ALFREDO ROBERTO DE CARVALHO AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE: AS BASES OBJETIVAS DE SUA EXCLUSÃO SOCIAL Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Fundamentos da Educação, do Centro de Educação, Comunicação e Artes, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, para obtenção do título de Especialista em Educação. Orientador: Prof. Dr. Paulino José Orso Cascavel 2003 ALFREDO ROBERTO DE CARVALHO AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE: AS BASES OBJETIVAS DE SUA EXCLUSÃO SOCIAL Cascavel 2003 ALFREDO ROBERTO DE CARVALHO AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE: AS BASES OBJETIVAS DE SUA EXCLUSÃO SOCIAL Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Fundamentos da Educação, do Centro de Educação, Comunicação e Artes, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, para obtenção do título de Especialista em Educação, aprovada pela seguinte banca examinadora:. Professor Dr. Paulino José Orso (Orientador) _______________________ Professora Ms. Lucia Terezinha Zanato Tureck _______________________ Professor Ms. Jadir Antunes _______________________ Apresentada em abril de 2003 pag:03 RESUMO As reflexões presentes neste trabalho têm por finalidade explicitar as condições de existência que as pessoas com deficiência encontraram ao longo da história da humanidade, procurando evidenciar as bases objetivas da exclusão social deste segmento em diferentes períodos históricos. Para dar conta deste objetivo, partiu-se do princípio de que os homens são seres determinados historicamente e que essa determinação se dá a partir da forma com que os mesmos estão organizados para produzir os seus meios de vida. Fundamentado neste princípio, são estabelecidos os condicionantes que fizeram com que aqueles com graves dificuldades físicas, ou sensoriais e ou cognitivas fossem eliminados naturalmente nas sociedades primitivas, exterminados ou abandonados no escravismo, ganhassem o direito a sobreviver na mendicância ou em asilos, no feudalismo, e a exclusão, no capitalismo, por não poderem ajustar-se à lógica da organização da produção burguesa. Além disto, procura-se evidenciar os condicionantes de classe que permeiam a existência deste segmento social. SUMÁRIO RESUMO.............................................. 3 INTRODUÇÃO.................................... 6 CAPÍTULO I: AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS: A ELIMINAÇÃO NATURAL .......................... 11 1.1 AS SOCIEDADES PRIMITIVAS: O SER HUMANO SE HOMINIZA .................. 11 1.2 AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS ................................................................. 13 CAPÍTULO II: AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVISTA: A POLÍTICA DE ELIMINAÇÃO OU ABANDONO DOS CONSIDERADOS IMPRODUTIVOS ........................................ 19 2.1 DA CONSTITUIÇÃO E DA CARACTERIZAÇÃO DO MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVISTA............................. 19 2.2 AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVISTA: AS RAZÕES OBJETIVAS PARA A ELIMINAÇÃO OU ABANDONO DOS CONSIDERADOS IMPRODUTIVOS....... 22 CAPÍTULO III: AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL: SUPERSTIÇÃO, CARIDADE E CASTIGO.................... 33 3.1 DA CONSTITUIÇÃO E DAS CARACTERÍSTICAS DO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL.................................... 33 3.2 AS EXPLICAÇÕES DA TEOLOGIA CRISTÃ PARA A EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: O RESULTADO DA VONTADE DIVINA OU DA AÇÃO DE FORÇAS DEMONÍACAS ................................................................. 38 3.3 AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL: MENDICÂNCIA, SEGREGAÇÃO E ELIMINAÇÃO FÍSICA................. 44 CAPÍTULO IV: AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA: A EXCLUSÃO DOS QUE NÃO ESTÃO AJUSTADOS A LÓGICA DO PROCESSO PRODUTIVO BURGUÊS............... 52 4.1 A TRANSIÇÃO DO FEUDALISMO PARA O CAPITALISMO: DA PRODUÇÃO DE SUBSISTÊNCIA À ECONOMIA DE MERCADO E A EXTRAÇÃO DA MAIS- VALIA ........................................ 53 4.2 A TEOLOGIA CRISTÃ: VELHOS E NOVOS ARGUMENTOS PARA EXCLUIR AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA .............................................................. 61 4.3 A CIÊNCIA E AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: DA VISÃO METAFÍSICA AO CIENTIFICISMO MÉDICO...................................................... 65 4.4 A EDUCAÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO CAPITALISMO: A SEGREGAÇÃO DOS ELEMENTOS PERTURBADORES DA ORDEM BURGUESA................................................................ 71 4.5 AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E SUA INCOMPATIBILIDADE COM A LÓGICA DA ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO CAPITALISTA ...................................... 85 CONCLUSÃO ..................................... 98 REFERÊNCIAS............................. 103 pag:06 INTRODUÇÃO Um fantasma ronda a Europa - o fantasma do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha (MARX e ENGELS, 2001, p. 7). Nos últimos anos, a proposta de inclusão social das pessoas com deficiência, nascida da própria luta daqueles que possuem graves dificuldades físicas, ou sensoriais e ou cognitivas, vem amedrontando amplos segmentos da sociedade, em especial, os profissionais da educação. Este sentimento tem envolvido educadores pertencentes às mais diferentes correntes e tendências pedagógicas e o debate de tal proposição não vem sendo feito com o rigor teórico que o tema exige. A grande maioria, por desconhecer quais são as necessidades específicas destas pessoas, qual o percentual da população que tem algum tipo de deficiência e, fundamentalmente, a principal razão que as levam a serem excluídas, ignoram-nas ou tomam-nas enquanto seres perturbadores da ordem pré-estabelecida. Uma das características fundamentais do modo de produção capitalista é a mercadorização de quase tudo aquilo que os homens necessitam para sobrevier. Este fato vem crescendo a cada dia que passa, obrigando a todos a satisfazerem suas necessidades básicas junto ao mercado de consumo, onde uma mercadoria deve ser trocada por outra, mediada simbolicamente pelo dinheiro. Para sobreviver nesta relação, as pessoas necessitam estar inseridas no processo produtivo produzindo, direta ou indiretamente, os recursos que possam garantir a sua existência. Apesar desta necessidade estar colocada a todos aqueles que pertencem à classe trabalhadora, devido ao resultado do desenvolvimento capitalista, uma parcela dos mesmos não consegue inserir-se nas relações assalariadas de trabalho. Este fato fez com que a organização burguesa da produção gerasse um novo personagem social, típico deste período histórico, isto é, os desempregados, que constituem um exército de força de trabalho de reserva à disposição e sem ônus para o capital. Na retaguarda do mesmo encontram-se aqueles que possuem uma capacidade produtiva menos rentável para os detentores do capital. Dentre estes estão as pessoas com deficiência pois, segundo Pastore (2000, p. 7), o Brasil é possuidor de um pag:07 dos maiores contingentes de pessoas com deficiência (16 milhões), sendo que destes, 60% encontram-se em idade de trabalhar e que 98% dos mesmos estão desempregados. O presente quadro revela que aqueles que pertencem a esse segmento social não estão conseguindo nem se colocarem enquanto mão-de-obra a ser explorada pelos capitalistas. Como decorrência de tal fato, os mesmos não vêm encontrando condições de serem provedores de sua própria existência e, desta forma, impedidos de viverem com dignidade já que, conforme a ideologia vigente, "é o trabalho que dignifica o homem". Um outro aspecto que caracteriza as atuais condições de existência das pessoas com deficiência e que parece ter relação direta com a sua exclusão do processo produtivo, reside no fato das mesmas serem compreendidas e tratadas como se fossem completamente distintas dos demais seres humanos. No imaginário social, tais pessoas são consideradas como improdutivas, inúteis e incapazes, sendo tomadas como um fardo pesado ou uma cruz a ser carregada pela família e pela sociedade. Esta forma de tratamento desconsidera a possibilidade das mesmas em se constituírem enquanto sujeitos e transformam-nas em objetos da caridade e da filantropia. Nesta forma de tratamento, as pessoas com deficiência quase sempre são concebidas como doentes ou enquanto seres eternamente infantis. Ainda existem aqueles que procuram atribuir uma razão mística para a existência de pessoas com deficiência, prática esta muito recorrente dentre as diversas religiões. Esta forma de compreender e tratar as pessoas com deficiência não é própria de uma classe da sociedade e nem do seu setor menos esclarecido. Mesmo aqueles que dispõem de uma cultura erudita, que conseguem formular uma consciência crítica a respeito da realidade, reproduzem em sua práxis quase as mesmas atitudes preconceituosas e discriminatórias em relação àqueles que pertencem a esse segmento social. Via de regra, não percebem que as pessoas com dificuldades físicas, ou sensoriais e ou cognitivas também compõem a totalidade social e, desta forma, vivenciam as contradições que são produzidas historicamente. Ainda, quase sempre, reduzem as causas das dificuldades enfrentadas pelas mesmas às suas características pessoais, desresponsabilizando as barreiras sociais e, com isto, naturalizam a segregação de que são vítimas. Ao contrário do que muitos costumam afirmar, a razão fundamental que exclui as pessoas com deficiência não é o resultado de procedimentos subjetivos, que podem ser banidos da consciência dos homens apenas a partir da atuação no campo das idéias. Existem condicionantes objetivos, sobre os quais são edificados procedimentos preconceituosos e pag:08 discriminatórios em relação a este segmento da sociedade e que estão presentes em diversos períodos da história da humanidade. Assim, com a finalidade de localizar as bases objetivas da exclusão social das pessoas com deficiência, o presente trabalho buscou investigar a condição de existência das mesmas, na história da humanidade, procurando compreender como estas se encontram situadas em diferentes relações sociais de produção. A investigação parece ser relevante já que tais condições podem ter produzido determinadas concepções a respeito dos limites e das possibilidades para a existência destas pessoas, que perpassaram os tempos e podem estar, de forma anacrônica ou ajustada, presente na atual ordem econômica, política e social, moldando o imaginário dos homens contemporâneos. Para dar conta destes objetivos, partiu-se do princípio de que os homens são seres condicionados historicamente e que tal condicionamento se dá a partir da forma com que os mesmos estão organizados para produzir os seus meios de vida, isto porque na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social (MARX, 1989, p. 28). Ao se partir deste pressuposto, não se buscou fazer uma análise moralizadora, onde apareçam as figuras de heróis e vilões e nem se pretendeu entender o movimento da história a partir de voluntarismo e subjetivismo. Pelo contrário, procurou-se levantar informações a respeito das condições de existência das pessoas com deficiência ao longo da história, em especial das sociedades primitivas e dos modos de produção escravista, feudal e capitalista, procurando compreendê-las dentro de cada uma destas determinadas relações sociais de produção, enquanto manifestações decorrentes da forma pelas quais a humanidade encontra-se organizada para produzir os seus meios de vida. Em cada um destes períodos históricos, procurou-se evidenciar a forma de propriedade dos meios de produção, como os homens estão organizados para produzirem os seus meios de vida, bem como, a necessidade que está colocada aos membros de cada sociedade. Para tanto a pesquisa foi dividida em quatro capítulos, os quais apresentam as principais bases objetivas onde se assentaram determinadas formas de se compreender e tratar as pessoas com deficiência. pag:09 No primeiro, que tratou das sociedades primitivas, buscou informações sobre determinados povos que sobreviviam na fase do nomadismo e de outros que já se encontravam instalados em determinados lugares, desfrutando de uma vida comunitária sedentarizada. Devido à dificuldade em obter-se informações a respeito dos agrupamentos humanos que viveram nos primórdios da história, foi analisada a forma de viver de algumas povoações mais recentes, que sobreviveram ou ainda sobrevivem praticando as relações primitivas de trabalho. Em seguida, passou-se a verificar a forma pelas quais estes diferentes povos compreenderam e trataram aqueles que possuíam graves dificuldades físicas, ou sensoriais e ou cognitivas. No segundo, que se ateve ao modo de produção escravista, procurou-se inicialmente compreender as tarefas colocadas aos homens que pertenciam as duas principais classes sociais da época, isto é, a dos escravos e a dos escravagistas. Na seqüência, buscou-se verificar a forma pela qual as pessoas com deficiência foram compreendidas e tratadas ao longo deste período histórico e articular as razões para tal procedimento com a estrutura da sociedade escravista. Para tanto, este capítulo centrou suas pesquisas nas antigas sociedades grega e romana, que são consideradas as principais civilizações do modo de produção escravista. No terceiro, onde se pesquisou o modo de produção feudal, além de analisar as relações de trabalho predominantes no mesmo, também buscou-se compreender a forma pela qual a teologia judaico-cristã explica a existência de pessoas com deficiência. A partir do levantamento dos principais elementos presentes na vida material e nas idéias dos homens que viviam nesta sociedade, buscou-se estabelecer as bases objetivas que determinaram as condições de existência de cegos, surdos e daqueles com graves deficiências físicas e ou cognitivas. No quarto e último capítulo, que tratou do modo de produção capitalista, buscou-se demonstrar como têm sido as condições de existência das pessoas com deficiência a partir das novas relações sociais que se estabeleceram com o processo de trabalho implantado pela burguesia. Para tanto, a pesquisa centrou-se na análise da teologia cristã, da ciência médica positivista, da educação formal e da lógica da organização da produção capitalista, procurando evidenciar suas possíveis contribuições para a forma de se proceder junto a este segmento da sociedade. Para efeito desta pesquisa, considerou-se deficiência enquanto sendo "toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano" (BRASIL, 1999, art. 3º, inc. I). pag:10 Ao longo da história da humanidade, as pessoas com problemas físicos, ou sensoriais e ou cognitivos receberam as mais diversas adjetivações, ainda hoje presentes no imaginário social. Dentre outros adjetivos atribuídos a tais pessoas, destacam-se: "cegos", "surdos", "deficientes", "excepcionais", "dementes", "aleijados", loucos", "incapazes", "inúteis", "inválidos", "disformes", "monstros", "débeis", "bobos", "mudos", "corcundas", "cochos" e "endemoniados". Todas estas e outras nomenclaturas foram conceituadas enquanto referência à pessoa com deficiência. Na atualidade, os conceitos mais utilizados para se referir a surdos, cegos e àqueles com problemas físicos ou cognitivos, objeto de estudo deste trabalho, são "pessoas portadoras de deficiência" e "pessoas com deficiência". Embora a primeira conceituação esteja mais presente nas literaturas que tratam do assunto, optou-se, nesta pesquisa, pela segunda, já que a mesma é mais utilizada pela vanguarda da auto-organização daqueles que pertencem a esse segmento social. A utilização do conceito de "pessoa com deficiência" está articulada à compreensão de que as dificuldades físicas, ou sensoriais e ou cognitivas, não são algo estranho para a essência dos seres humanos e nem se constituem em empecilhos para que ela se realize, isto porque o homem não será o resultado daquilo que se idealiza, mas, sim, das suas condições objetivas de vida. Neste sentido, a deficiência não é algo que o indivíduo porta, como se fosse um objeto estranho ao seu ser, mas, sim, passa a ser compreendida enquanto um atributo que faz parte da existência da pessoa que a possui e que as suas condições de vida não estão determinadas a priori, mas, pelo contrário, dependerão dos múltiplos determinantes que envolvem a sua sobrevivência. Ao trabalhar-se com uma conceituação que abarca todas as pessoas com deficiência, não se pretende negar as inúmeras características que são particulares a cada um dos seus segmentos, mas, sim, parte-se do princípio de que aqueles com dificuldades físicas, ou sensoriais e ou cognitivas, podem estar em desajuste em relação a determinadas formas dos homens produzirem os seus meios de vida. Portanto, a utilização deste conceito está articulada ao pressuposto de que estas pessoas podem ter encontrado ou ainda encontram dificuldades muito parecidas de sobrevivência, ou seja, de que em cada sociedade as mesmas, por não possuírem um biotipo ajustado às suas relações sociais de produção, foram tratadas de forma bastante semelhante. pag:11 CAPÍTULO I AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS: A ELIMINAÇÃO NATURAL Com a finalidade de localizar e compreender as bases objetivas da exclusão das pessoas com deficiência na história da humanidade, começar-se-á pela análise das sociedades primitivas, verificando nos poucos escritos a respeito desta época quais devem ter sido as condições de existência deste segmento social ao longo desse período histórico. Apesar dos poucos relatos a respeito do problema proposto para este capítulo, algumas bibliografias fornecem certas informações importantes, as quais possibilitam o desenvolvimento de análises que podem contribuir para os objetivos deste trabalho. 1.1 AS SOCIEDADES PRIMITIVAS: O SER HUMANO SE HOMINIZA O início deste período coincide com o processo de hominização do ser humano, ocorrido a partir do momento em que este passou a trabalhar para produzir seus meios de vida, pois, "o primeiro ato histórico destes indivíduos pelo qual se distinguem dos animais não é o fato de pensar, mas o de produzir seus meios de vida" (MARX e ENGELS, 1984, p. 27). Por meio desta atividade, os homens deixaram de ser um produto do mundo natural para se tornarem um produzido que também atua enquanto produtor daquilo que o produz. Isto passa a ocorrer porque os homens, ao atuarem sobre o meio em que vivem, modificam-no e se modificam mutuamente. Os povos que viveram nos primórdios dos tempos históricos não possuíam meios para registrar muitas informações a respeito de como teriam sido as suas condições de existência. No entanto, segundo Ermakova e Rátnikov (1986, p. 33-35), informações encontradas em escavações arqueológicas de antigas povoações e sepulturas dos homens que viveram há muitos milhares de anos e outras obtidas a partir de pesquisa junto a alguns povos contemporâneos que, por razões históricas alheias à sua vontade, ainda sobrevivem trabalhando de forma primitiva, dão uma noção de como deve ter sido a vida das pessoas antes do estabelecimento das sociedades classistas. pag:12 Nestes diferentes tempos e lugares, as águas dos rios, dos lagos e dos mares e os campos de caça e de coletas de frutos, consistiam-se nos espaços onde os homens obtinham os seus meios de vida. Os instrumentos de trabalho daquela época eram muito simples, feitos geralmente de pedra ou de madeira. Com estes instrumentos os homens tinham que dar conta de produzir a sua existência, através da caça, da pesca e da coleta de frutos. Sem a ajuda mútua, os homens não poderiam obter alimentos e nem se defenderem dos perigos que o mundo selvagem lhes oferecia. Por isso, viviam e realizavam as suas atividades produtivas em grupos, os quais eram formados por gens ou tribos. Na maior parte deste período da história, a humanidade foi formada de pequenos agrupamentos de nômades, os quais sobreviviam perambulando pela terra, enfrentando um mundo selvagem, em busca da caça, da pesca e de tudo aquilo que a natureza podia lhes oferecer. Mais tarde, segundo Engels (1984, p. 24-25), com o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, os homens passam a se fixar em determinadas regiões e, desta forma, iniciaram a sua fase de sedentarização. Durante toda a existência do homem primitivo, tanto na sua fase nômade quanto na sedentária, não havia posse privada dos meios de produção. Na primeira fase, os rios, os lagos e os mares, bem como os campos de caça e de coletas de frutos, podiam ser usufruídos por todos os agrupamentos que por eles transitassem. Na segunda fase, os animais domesticados e as terras cultivadas, bem como os alimentos extraídos das atividades agrícolas, eram propriedades coletivas da comunidade que as desenvolvessem, o que significa afirmar que "a primeira forma de propriedade é a propriedade tribal" (MARX e ENGELS, 1984, p. 29- 30). Por não haver propriedade privada dos meios de produção, também não havia, nessas sociedades, divisão de classes e, por conseqüência, nem as relações de subordinação, opressão e exploração. "Entre os membros da gens ou tribo não havia diferenças essenciais quanto ao seu lugar no sistema de produção social. Produziam e consumiam coletivamente os meios de subsistência" (ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986 p. 34). No início, o trabalho era dividido em conformidade com a faixa etária e o sexo de cada um. Mais tarde, esta divisão se deu entre as tribos de agricultores, de criadores de gado e de caçadores. Uma das características desse período histórico era o seu nível extraordinariamente baixo de desenvolvimento das forças produtivas, o qual resultava num pequeno rendimento das atividades voltadas à produção. Os homens daquela época produziam tão pouco que quase logo consumiam todo o produto. Tal realidade não oferecia condições para o surgimento da desigualdade social, isto é, o acúmulo de riqueza e poder nas mãos de alguns em detrimento da maioria e obrigava a todos a viverem em grupos e a dependerem mutuamente uns dos pag:13 outros para sobreviver. Desta forma, devido às dificuldades existentes nesse mundo selvagem, cada pessoa necessitava para sobreviver estar em condições de produzir os seus meios de vida e auxiliar os demais membros do grupo a fazer o mesmo e, ainda, ser capaz de se livrar dos perigos impostos pela natureza. Esta forma de relação social de produção que os homens estabeleceram entre si, objetivando produzir os meios de vida de que necessitavam para sobreviver, ficou conhecida na historiografia como sociedades primitivas. A mesma representa a parte mais extensa da história da humanidade, tendo inicio a partir do momento em que o ser humano passou a se hominizar e começando a desaparecer com o surgimento das primeiras sociedades classistas, ocorrido por volta de seis mil anos antes de Cristo. 1.2 AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NAS SOCIEDADES PRIMITIVAS Se pouco se sabe a respeito das condições de existência dos homens primitivos, menos ainda são os registros que tratam da vida daqueles que possuíam alguma deficiência nessas sociedades. No entanto, parece ser correto afirmar que no decorrer deste longo período da história essas pessoas existiram, já que "anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações traumáticas, doenças graves e de conseqüências incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente, são tão antigas quanto a própria humanidade" (SILVA, 1986, p. 21). Das sociedades mais antigas, que viveram na fase da produção primitiva e que deram origem a grandes civilizações da antigüidade, como a egípcia, a grega e a romana, poucas informações chegaram até os tempos atuais. Em relação ao objeto de pesquisa deste trabalho, Silva (1986) afirma que: nada de concreto existe quanto à vida de pessoas com deficiências físicas ou mentais, do velho e do doente nos primeiros nebulosos e muitas vezes enigmáticos milênios da vida do homem sobre a Terra, a não ser supostas situações que estão baseadas em indícios extremamente tênues. É evidente que fatos concretos ou situações comprovadas de vida, em toda a fase pré-histórica da História da Humanidade, são impossíveis de serem estabelecidos, mesmo com o magnífico concurso dos sábios que dominam muito bem toda a ciência arqueológica e áreas afins (p. 28). No entanto, o pesquisador, procurando situar tais pessoas naquele ambiente, pode estabelecer algumas relações que permitam uma compreensão razoável a respeito de quais teriam sido as condições de existência daqueles que possuíam algum tipo de deficiência nas pag:14 sociedades primitivas. Além disso, deve-se levar em consideração algumas pesquisas efetuadas junto a certos povos que ainda mantém ou mantinham até bem pouco tempo, uma vida alicerçada nas formas primitivas de produção e que podem oferecer informações importantes a respeito dos procedimentos em relação a tais pessoas, ao longo desse período histórico. Diante da necessidade do homem primitivo em travar uma luta incessante pela sobrevivência em condições extremamente adversas, este necessitou possuir uma boa capacidade física, sensorial e cognitiva, a fim de prover os seus meios de vida e, ainda, livrar-se dos perigos oferecidos por um mundo selvagem. Se a sobrevivência do homem primitivo estava condicionada pela capacidade do mesmo em bastar-se a si próprio e, ainda, auxiliar na proteção de seu agrupamento, como devem ter sido as condições de existência das pessoas com deficiência, nas sociedades primitivas? Apesar das reduzidas informações a respeito da forma pelas quais os povos primitivos tratavam aqueles que não possuíam os atributos físicos, sensoriais e cognitivos,adequados às atividades por eles desenvolvidas para prover os seus meios de vida, as mesmas apontam no estabelecimento de duas tendências: uma, que perpassou todo este período histórico, marcada pelo abandono, segregação e extermínio das pessoas com deficiência e outra, que vigorou em algumas comunidades sedentarizadas, caracterizada por atitudes de aceitação, de apoio e de assimilação das mesmas. Em relação aos povos que viviam ou ainda vivem sob o modo de produção primitivo, que adotavam ou ainda adotam o procedimento do abandono, da segregação e do extermínio, Silva (1986, p. 42-45) destaca, dentre outros, os habitantes da Ilha de Bali, na Indonésia; os Chiricoa, habitantes das matas colombianas; os Esquimós, que sobreviviam ou ainda sobrevivem nas regiões geladas do Canadá; os Ajores, que ainda hoje vivem como nômades numa região entre os rios Otuquis e Paraguai, na América do Sul; os Dene, do Noroeste do Canadá; os Dieri, que ocupa algumas regiões do Centro da Austrália; os Navajos, que são índios aparentados dos Apaches e formadores da maior raça indígena norte-americana; os Sálvia, que sobrevivem nas matas fechadas da selva amazônica; os Saulteaux, pertencentes à raça dos Ojibwa, que habitavam e ainda habitam uma região entre os Estados Unidos e o Canadá; os Uitoto, índios do alto Amazonas, a sudeste da Colômbia e nas proximidades do Peru e os Wageo, primitivos habitantes da Nova Guiné. Um exemplo dos procedimentos do abandono, da segregação e do extermínio das pessoas com deficiência, pode se encontrado nos estudos a respeito dos Chiricoas, os quais afirmam que os integrantes deste povo pag:15 habitam as matas colombianas e mudam-se com facilidade ou de acordo com as exigências para sobrevivência do grupo. Esses índios, tanto quanto certas tribos do Caribe antigo também o faziam, abandonam pessoas muito idosas ou incapacitadas por doenças ou por mutilações por ocasião de suas mudanças. Cada membro da comunidade carrega tudo o que pode levar e transportar pela selva e que é considerado como estritamente necessário. Essas pessoas deficientes ou muito velhas e doentes terminam seus dias abandonadas nos antigos sítios de morada da tribo, por não poderem se movimentar ou por não serem consideradas como fundamentais para a sobrevivência do grupo (SILVA, 1986, p. 42-43). Este relato sugere que, diante das enormes dificuldades que os povos mais primitivos possuíam para obter os seus meios de vida, os procedimentos do abandono, da segregação e do extermínio davam-se por razões determinadas pela própria realidade material, ou seja, essas práticas em relação as pessoas com deficiência independiam da vontade dos seres humanos e se faziam necessárias por questão de sobrevivência dos demais membros do grupo. Já em relação aos povos que adotavam ou ainda adotam a prática da aceitação, do apoio e da assimilação, segundo Silva (1986, p. 40-42), podem ser destacados, dentre outros, os Aonas, que ainda hoje residem à beira do lago salgado de Rudolf, no Quênia, numa ilha conhecida como Elmolo; os Azandes, povo que ainda é muito primitivo e habita as florestas situadas entre o sul do Sudão e o Congo; os Ashantis, que habitam a parte sul de Gana, a oeste da África e totalizam mais de um milhão de pessoas; os Dahomeys, que se localizam na África Ocidental; os Pés Negros, tribo praticamente extinta da América do Norte; os Ponapés, que habitam as ilhas Carolinas Orientais; os Semangs, habitantes de parte da Malásia e os Xaggas, que vivem nas fraldas do monte Kilimanjaro, ao norte da Tanzânia, leste da África. As justificativas por parte destes povos para a adoção de tais procedimentos, apesar de quase sempre estarem assentadas em argumentos místicos, não eram uniformes nas diversas comunidades e colocavam as pessoas com deficiência em diferentes situações sociais. Tal afirmação pode ser demonstrada na comparação entre os Aonas e os Xaggas. Os Aonas, de nômades que eram, transformaram-se em pescadores. Segundo eles acreditam, os cegos mantêm relação direta com o sobrenatural e os espíritos do sobrenatural moram no fundo do lago salgado e previnem diretamente os cegos quanto aos locais onde há peixe. Assim, os cegos sempre participam das pescarias primitivas (...) e ainda, são sempre bem tratados e respeitados (SILVA, 1986, p. 40). Já junto aos Xaggas, tal prática se dava porque no seio dessa tribo primitiva ninguém se atreve a prejudicar ou a matar crianças ou adultos com deficiências, pois segundo acreditam, os maus espíritos habitam nessas pessoas e nelas se aquietam e se deliciam, o que torna a normalidade possível a todos os demais (SILVA, 1986, p. 42). pag:16 Comparando estes dois relatos, embora em ambos os casos a pessoa com deficiência esteja sendo aceita e valorizada no agrupamento social, pode-se afirmar que a valorização assume características bastante diferenciadas em cada uma das situações. Enquanto no primeiro caso a deficiência parece atribuir um aspecto positivo a aquele que a possui, no último ela é concebida enquanto um elemento degradante ao ser humano, o que o coloca numa condição de inferioridade em relação àquele que é considerado como normal. Um outro costume encontrado junto aos povos primitivos, foi a prática da exposição pública das pessoas com deficiência enquanto objetos do ridículo. Dentre os povos que adotavam tal procedimento, encontravam-se os nativos do México, onde entre os Aztecas da época Montezuma (1466 à 1520) havia uma espécie de jardim zoológico na capital do Império, Tenochtitlán (hoje México, D F ), que chegou a impressionar os homens do conquistador Cortéz pela sua organização e variedade de animais. O que mais chocou os homens espanhóis, porém, foi o fato de Montezuma ter em instalações separadas homens e mulheres defeituosos, deformados, corcundas, anões, albinos, onde eram apupados, provocados e ridicularizados (SILVA, 1986, p. 46). A prática expositiva, adotada pelos indígenas mexicanos em relação às pessoas com deficiência, não é própria das sociedades primitivas, já que a mesma pode ser encontrada na história através dos personagens do "bobo da corte" e nos espetáculos circenses. Na atualidade também pode ser destacado como prática expositiva, aquelas contidas em campanhas efetuadas por entidades filantrópicas, voltadas ao atendimento de pessoas com deficiência, as quais, com a finalidade de justificar o seu trabalho e angariar fundos para mantê-lo, expõem cegos, surdos e aqueles com graves dificuldades físicas ou cognitivas, enquanto objetos de comoção social, buscando sensibilizar a sociedade a respeito de seu trabalho e convencer a mesma a fazer doações financeiras para a sua manutenção. O fato mais intrigante a ser considerado nas sociedades primitivas em relação as pessoas com deficiência e que, mesmo de forma aligeirada, merece algumas reflexões, reside no dualismo de tratamento a que elas foram submetidas, o qual se verifica ao se comparar as formas de se proceder de alguns povos que já viviam de forma sedentarizada. Embora muitos registros deixados por estes povos primitivos e mesmo nas análises de alguns pesquisadores, as explicações para as práticas marcadas pelo abandono, segregação e extermínio das pessoas com deficiência e outra caracterizada por atitudes de aceitação, apoio e assimilação das mesmas, estejam sempre alicerçados em argumentos místicos, ao se analisar alguns fatos existentes na própria realidade vivenciada por aquelas comunidades, parece ser possível encontrar razões objetivas que expliquem tais procedimentos. pag:17 O primeiro fato a ser considerado é o de que a maior parte da história da sociedade primitiva ocorreu durante a fase de nomadismo dos seres humanos, sendo esse período marcado por enormes dificuldades de sobrevivência impostas pela própria natureza, onde cada membro do agrupamento humano necessitava estar apto para enfrentar os perigos oferecidos pelo mundo selvagem. Diante desta realidade, não havia condições objetivas que permitissem a sobrevivência de pessoas com deficiência. Isto ocorria, já que os cegos, os surdos e os com sérias limitações físicas e ou cognitivas, não possuíam meios de acompanhar o ritmo dos demais membros do grupo nos constantes deslocamentos em busca de novos campos de caça e coletas de frutos, bem como, nos constantes enfrentamentos com animais ferozes e com outros agrupamentos de seres humanos e, desta forma, tornando-se um pesado fardo que a sua comunidade não podia carregar. Sendo assim, estes povos primitivos, por uma questão de sobrevivência, não tinham outra alternativa a não ser livrarem-se daqueles que estavam sem condições de acompanhá-los em seu ritmo de vida. Porém, este processo seletivo existente nas sociedades primitivas, ocorria de forma natural, de acordo com as necessidades de sobrevivência e não em decorrência de sentimentos de ódio e repulsa. É evidente que alguém que não se enquadra no padrão social e historicamente considerado normal, quer seja decorrente do seu processo de concepção e nascimento ou impingido na luta pela sobrevivência, acaba se tornando um empecilho, um peso morto, fato que o leva a ser relegado, abandonado, sem que isso cause os chamados sentimentos de culpa característicos da nossa fase histórica (BIANCHETTI, 1998, p. 27) . O segundo fato a ser considerado, refere-se ao processo de sedentarização dos homens. Além da descoberta da agricultura e da domesticação de alguns animais, também houve um maior incremento na produção de instrumentos artesanais, os quais puderam potencializar as ações humanas. Estes acontecimentos permitiram aos povos primitivos melhorarem as suas condições de vida, o que favoreceu a sobrevivência de pessoas com deficiência. Um outro elemento tão importante quanto o processo de sedentarização, para que estas pessoas pudessem ter o direito a sobreviver, reside no fato de que tais povos produziam seus meios de vida sobre um regime comunitário, uma espécie de "comunismo primitivo", onde se podia adotar o princípio de que cada um contribuiria com o grupo conforme as suas possibilidades e receberia para si aquilo que o mesmo pode lhe dar. Em tal sociedade é perfeitamente possível as atitudes de aceitação, de apoio e de assimilação das pessoas com deficiência, já que as mesmas poderiam desenvolver atividades que estavam em conformidade com a sua forma de ser e, assim, contribuindo na manutenção do grupo. pag:18 Apesar de existirem as condições objetivas para que as pessoas com deficiência sobrevivessem nas sociedades primitivas sedentarizadas, é possível que alguns povos ainda continuaram a adotar a prática do abandono, da segregação e do extermínio. Esse procedimento pode ser explicado enquanto o resultado da herança de antigos costumes que, como já exposto, decorriam de razões objetivas que a natureza impunha aos agrupamentos de nômades e que, num ambiente já favorável à sobrevivência de tais pessoas, as mesmas continuavam sendo eliminadas. Para justificar este procedimento, que não mais encontrava razão de ser na própria realidade, buscou-se fundamentar esta prática em explicações místicas. As explicações metafísicas para a existência de pessoas com deficiência acompanharam o processo de desenvolvimento da história da humanidade e chegaram até os tempos atuais. Ao longo deste percurso estas pessoas foram recebendo outros "atributos" que contribuíram para o seu processo de exclusão social. O mais importante destes é o que surgiu com o estabelecimento das sociedades de classes, onde os trabalhadores passaram a ter a obrigação de produzirem cada vez mais um excedente maior. Tomando o conceito de deficiência enquanto sendo "toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividades, dentro do padrão considerado normal para o ser humano" (BRASIL, 1999, art. 3, inc. I), pode-se afirmar que as pessoas que a possuem encontram dificuldades para desenvolver, no processo produtivo, um ritmo semelhante ao daqueles tidos como normais, o que as leva a serem consideradas como seres inúteis, incapazes e improdutivos. Estes conceitos começam a ser formados nas sociedades escravistas, em especial, na antiga Grécia e Roma, que serão objetos de estudo do capítulo seguinte. pag:19 CAPÍTULO II AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVISTA: A POLÍTICA DE ELIMINAÇÃO OU ABANDONO DOS CONSIDERADOS IMPRODUTIVOS Os relatos a respeito das condições de existência das pessoas com deficiência ao longo da história da humanidade também se fazem presentes em alguns estudos a respeito dos povos que viveram sob as relações de produção escravista. As principais formações sociais desta época foram a grega e a romana, as quais consistiram nas formas mais aperfeiçoadas do referido período histórico. Com a finalidade de dar conta do objetivo proposto para este capítulo, procurar-se-á mostrar a constituição e caracterização do modo de produção escravista, evidenciando as formas pelas quais os homens se organizavam para produzir os meios de vida de que a sociedade necessitava e verificar as condições de existência das pessoas com deficiência, demonstrando a articulação entre as mesmas e a realidade vivenciada por essas formações sociais. 2.1. DA CONSTITUIÇÃO E DA CARACTERIZAÇÃO DO MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVISTA Com o processo de sedentarização, verificado nas sociedades primitivas, o qual foi decorrente do desenvolvimento das forças produtivas, os homens encontraram melhores condições para observar e compreender o mundo, permitindo-lhes uma melhor organização do trabalho, o que possibilitou a potencialização da existência do ser humano. Tal fato provocou o desenvolvimento de todos os ramos da produção, criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos, tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao mesmo tempo, aumentou a soma de trabalho diário correspondente a cada membro da gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra (ENGELS, 1984, p. 181). pag:20 Na quase totalidade da existência da sociedade primitiva, quando diferentes agrupamentos humanos entravam em conflitos, a tribo vencedora não podia fazer prisioneiros aqueles que pertenciam ao grupo dos perdedores, já que ela não possuía meios de alimentá-los e as alternativas eram assassinar todos os inimigos ou aceitá-los como novos membros da comunidade. Porém, com a possibilidade do homem de produzir mais do que aquilo que ele necessitava consumir para viver, fato este resultante da primeira grande divisão social do trabalho, criaram-se condições para que os prisioneiros fossem transformados em escravos. Diante destes acontecimentos, pode-se afirmar que "da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados" (ENGELS, 1984, p. 181). Desta forma, as sociedades primitivas foram desaparecendo e em seu lugar surgiram novas relações de produção, dentre as quais encontra-se aquela que se estabeleceu nas antigas civilizações gregas e romanas. Nas mesmas, a sociedade estava constituída de duas classes principais e antagônicas, aonde de um lado encontram-se os detentores dos meios de produção (os escravagistas) e de outro os despossuidos (os trabalhadores escravizados). Tanto na Grécia quanto em Roma, o trabalho era concebido enquanto uma atividade degradante para os homens e só deveria ser desenvolvido por aqueles considerados como seres inferiores. Estes, com exceção de uma pequena minoria de trabalhadores livres, eram prisioneiros de guerras que para terem o direito à vida eram obrigados a trabalhar como escravos. Eram extremamente brutais as formas de exploração no regime escravagista. A duração da vida do escravo não tinha importância para o seu senhor. Por isso, procurava tirar dele o máximo proveito num prazo mais curto possível. A mortalidade entre os escravos era muito elevada. Freqüentemente, a exploração impiedosa do escravo durante 7-8 anos causava a sua morte ( ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986, p. 43). Este fato colocava para a classe dominante a necessidade de sempre renovar a força de trabalho. Para tanto, a guerra era o principal instrumento através da qual poder-se-ia, além de conquistar territórios e promover saques, obter novos escravos. "A conquista das Gálias, realizada por Júlio César, rendeu mais de um milhão de escravos, e o próprio César, de uma feita, vendeu mais de cinqüenta mil" (PONCE, 1992, p. 63). Embora a principal fonte de renovação da força de trabalho escrava fosse a obtenção de prisioneiros de guerras, na Grécia, assim como em Roma, também passou-se a escravizar os membros da própria comunidade que caíam em ruína. pag:21 O cidadão pobre que perdera as suas terras poderia considerar-se feliz se lhe permitissem continuar cultivando essas mesmas terras na qualidade de colono, com a condição de entregar ao novo proprietário cinco sextos do seu trabalho. Isso acontecia no melhor dos casos, porque podia ocorrer que o valor tirado da terra não fosse suficiente para cobrir o adiantamento recebido. Nesse caso, o devedor vendia os seus filhos como escravos, se não vendia a si próprio, quando não os tinha (PONCE, 1992, p. 38). Com tais procedimentos a guerra por escravos também se fez no interior da própria comunidade e estabeleceu o poder de uma pequena minoria sobre a grande maioria da população. Segundo Ponce (1992, p. 64), os escravos eram obrigados a trabalhar acorrentados e necessitavam ser vigiados severamente, o que implica dizer que era somente através do terror que a classe dominante podia fazer com que tais trabalhadores produzissem aquilo que os seus proprietários esperavam. Sobre Roma, este mesmo autor afirma que "numa ocasião em que, sob o pretexto de não ter sido descoberto o assassino de um nobre rico, se condenou à morte os quatrocentos escravos que viviam na sua vila" (PONCE, 1992, p. 64). Para se manter um modo de produção onde a grande maioria da população era obrigada a se sujeitar pela força aos interesses de uma pequena minoria, fez-se necessário que os detentores do poder dispusessem de recursos que lhes permitíssem manter o status quo. Na maior parte deste modo de produção, este instrumento era um exército constituído pelos próprios detentores do poder, ou seja, a própria classe dominante armada agindo na defesa dos seus interesses. Diante desta realidade, tornava-se indispensável que os membros da classe dominante estivessem preparados para atuar nas atividades beligerantes. Esse condicionamento colocava para os mesmos a necessidade de iniciar a educação de seus filhos nas artes guerreiras ainda na sua infância. Um exemplo típico deste fato é o que acontecia em Esparta: aos sete anos, o Estado apoderava-se do jovem espartano e não mais abria mão dele. De fato, até aos quarenta e cinco anos pertencia ao exército ativo, e até aos sessenta, à reserva. E como o exército era, na realidade, a nobreza em armas, o espartano vivia permanentemente com a espada em punho (PONCE, 1992, p. 40). Embora com características um pouco diferentes, a necessidade da classe dominante estar armada e preparada para defender os seus interesses esteve também colocada para os detentores do poder tanto nas demais cidades estados da Grécia quanto em Roma. pag:22 2.2 AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO ESCRAVISTA: AS RAZÕES OBJETIVAS PARA A ELIMINAÇÃO OU ABANDONO DOS CONSIDERADOS IMPRODUTIVOS Após demonstrar a forma pelas quais os homens encontravam-se organizados para produzirem os seus meios de vida, no modo de produção escravista, o passo seguinte consiste em compreender as condições de existência que as pessoas com deficiência devem ter encontrado naquela realidade. A partir desse momento da história, objetivando uma melhor compreensão do tema proposto para esta pesquisa, faz-se necessário não perder de vista o fato de que a sociedade está dividida em duas classes com interesses antagônicos. Também parece ser significativo considerar a idade em que a pessoa torna-se um ser humano com deficiência, já que, dependendo do momento em que isto ocorre em sua vida e, principalmente, da classe social a que o mesmo pertence, as conseqüências para ele provavelmente serão diferentes. Com a finalidade de compreender as condições de existência das pessoas com deficiência no modo de produção escravista, buscar-se-á analisar algumas bibliografias que tratam das sociedades grega e romana, as quais foram as principais civilizações deste período da história. Nelas são encontrados registros revelando que essas pessoas ao nascer podiam ser assassinadas ou abandonadas nas florestas ou nas margens de rios. Também existem informações a respeito de homens que possuíam limitações físicas e ou sensoriais, que desempenharam importantes funções ao longo de suas vidas. Uma das práticas mais conhecidas do modo de produção escravista em relação às pessoas com deficiência foi a adotada em Esparta. Nesta cidade-estado, toda a criança que nascia e que era filho da nobreza tinha que ser, em conformidade com as leis vigentes, examinada por uma espécie de comissão oficial formada por anciãos de reconhecida autoridade, que se reunia para tomar conhecimento do novo cidadão. Conforme estas leis, se fosse um bebê normal e forte (se o achavam belo, bem formado de membros e robusto) ele era devolvido ao pai que passava a ter a incumbência de criá-lo. Depois de certa idade - entre os 6 e 7 anos - o Estado tomava a si a responsabilidade e continuava sua educação (PLUTARCO apud SILVA, 1986, p. 121). Tal procedimento, visava garantir que os membros da futura geração, estivessem aptos para dar conta das tarefas impostas pela sua realidade, onde a perfeição física, sensorial e cognitiva, deveria ser uma condição indispensável. Sendo assim, o que a comissão buscava pag:23 era evitar que as crianças, que se encontravam fora da normalidade exigida, pudessem sobreviver. Para tanto: se lhes parecia feia, disforme e franzina, como refere Plutarco, esses mesmos anciãos, em nome do Estado e da linhagem de famílias que representavam, ficavam com a criança. Tomavam-na logo a seguir e a levavam a um local chamado "Àpothetai", que significa "depósitos". Tratava-se de um abismo situado na cadeia de montanhas Taygetos, perto de Esparta, onde a criança era lançada e encontraria sua morte, "pois, tinham a opinião de que não era bom nem para a criança nem para a república que ela vivesse, visto como desde o nascimento não se mostrava bem constituída para ser forte, sã e rija durante toda a vida (SILVA, 1986, p. 122). O abandono também foi uma outra forma encontrada pelos antigos gregos para tratar as crianças que nasciam com algum tipo de deficiência. No antigo Peloponeso, os seus habitantes recorriam a lugares considerados como sagrados, tais como as florestas, os vestíbulos dos templos, as beiras dos rios, as cavernas, onde as crianças eram deixadas bem embrulhadas numa grande panela de barro ou num cesto, com roupas que continham seus símbolos maternos (SILVA, 1986, p. 123). Em Atenas, considerada por muitos historiadores como a cidade mais culta da antiga Grécia, quando nascia uma criança pertencente à classe dominante, o pai deveria reunir os parentes e os amigos e apresentar o recém nascido e iniciá-lo no culto dos deuses. Este ritual, uma espécie de batismo, acabava num banquete para os convidados. "Caso não fosse realizada a festa, era sinal de que a criança não sobreviveria. Cabia, então, ao pai o extermínio do próprio filho" (SILVA, 1986, p. 126). Ainda nesta mesma cidade-estado, alguns dos mais famosos filósofos da antigüidade procuraram expressar a forma pela qual a sociedade deveria tratar as pessoas com deficiência. Platão (428-348 a.C.), ao procurar descrever sobre como deveria ser uma república perfeita, afirma: "... e no que concerne aos que receberam corpo mal organizado, deixa-os morrer (...). Quanto às crianças doentes e às que sofrerem qualquer deformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro desconhecido e secreto" (PLATÃO apud SILVA, 1986, p. 124). Aristóteles (384 - 322 a. C.) também manifestou a sua opinião em relação às pessoas com deficiência, a qual pode ser resumida através das seguintes palavras: "quanto a saber quais as crianças que se deve abandonar ou educar, deve haver uma lei que proíba alimentar toda criança disforme" (ARISTÓTELES apud SILVA, 1986, p. 124). Diante de tais relatos parece ser possível afirmar que o procedimento do abandono e do extermínio das pessoas com deficiência era uma prática generalizada, ou, no mínimo, bastante pag:24 comum na antiga Grécia e, como não poderia ser diferente, estava presente na consciência de seus principais pensadores. Estas práticas funcionavam como os lendários procedimentos de Procusto, o qual, segundo a mitologia grega, possuía dois leitos de ferro, no caminho entre Mégara e Atenas, e nele estendia todos os viajantes que conseguia aprisionar. Os leitos eram a medida, sendo que, com base nesses padrões pré-estabelecidos os corpos dos prisioneiros que não se adequavam sofriam uma intervenção, isto é, ele amputava os pés dos que ultrapassavam a cama pequena ou distendia violentamente as pernas dos que não preenchiam o comprimento do leito maior (BRANDÃO apud BIANCHETTI, 1998, p. 22-23). Uma outra importante civilização do modo de produção escravista foi o Império Romano, o qual dominou quase todos os povos conhecidos pelo mundo ocidental. No mesmo, o principal instrumento que a classe dominante possuía para defender os seus interesses era o exército, o qual estava constituído por diversas legiões. Até século II a.C., as legiões não se compunham de soldados profissionais e sim de grandes e pequenos proprietários que abandonavam temporariamente as suas propriedades para se dedicar às lides guerreiras e, comumente, obter mais riqueza em terras e escravos (PONCE, 1992, p. 62). A partir do século II a.C., o exército romano foi profissionalizado para melhor servir como instrumento de defesa dos interesses dos escravagistas. Este fato provocou uma distinção significativa nas condições de existência das pessoas com deficiência que pertenciam à classe dominante, em especial, aqueles que adquiriam tal condição na juventude ou na vida adulta. Em Roma, no início, as condições de existência das pessoas com deficiência não foram diferentes daquelas já verificadas na antiga Grécia. Nesta sociedade o Pater família possui poder de um soberano e a antiga lei das Doze Tábuas, do início da república até a metade do século V a.C., permite, entre outras coisas, que o pai mate os filhos anormais, prenda, flagele, condene aos trabalhos agrícolas forçados, venda ou mate filhos rebeldes, mesmo quando, já adultos, ocupam cargos públicos (MANACORDA, 1997, p. 74). Assim como Platão e Aristóteles na Grécia, em Roma Cícero e Sêneca também emitiram suas opiniões a respeito das pessoas com deficiência e de como se deveria proceder em relação às mesmas. Cícero, que viveu entre 106 a.C.- 43 a.C., comenta em sua obra "De Legibus" que nas Leis das Doze Tábuas havia uma determinação para o extermínio de crianças consideradas como anormais: "Tábua IV - Sobre o Direito do Pai e Direito do pag:25 Casamento: Lei III - O pai imediatamente matará o filho monstruoso e contrário à forma do gênero humano que lhe tenha nascido há pouco" (CÍCERO apud SILVA, 1986, p. 128). Este mesmo filósofo romano, emitiu seu ponto de vista a respeito do como se deveria proceder em relação às pessoas com deficiências múltiplas: reunamos agora todos esses males num só indivíduo. Que ele seja surdo e cego e que prove atrozes dores - ele será logo consumido por esses sofrimentos e, se por falta de sorte eles chegarem a se prolongar, por que suportá-los? A morte é um refúgio seguro onde esse indivíduo estará ao abrigo dessas horrendas misérias (CÍCERO apud SILVA,1986, p. 141). Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.), ao comentar a prática do assassinato de recém-nascidos com deformidades físicas, procura demonstrar que na existência dos homens os mesmos necessitam tomar determinadas atitudes que devem ser encaradas com naturalidade. Ele cita alguns exemplos, onde se pode deduzir que os mesmos eram bastante óbvios para os romanos daquela época: ... Riscai, então, do número dos vivos a todo culpado que ultrapasse o limite dos demais, terminai com seus crimes do único modo viável, mas fazei-o sem ódio (...). Não se sente ira contra um membro gangrenado que se manda amputar; não o cortamos por ressentimento, pois, trata-se de um rigor salutar. Matam-se cães quando estão com raiva; exterminam-se touros bravios; cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos; se nascerem defeituosos e monstruosos, afogamo-los; não devido ao ódio, mas à razão, para distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis (SÊNECA apud SILVA, 1986, p. 128-129). Para que o Pater Família pudesse assassinar o seu recém-nascido, bastaria que o mesmo apresentasse a criança a um grupo de cinco pessoas, as quais deveriam atestar a sua monstruosidade e, com isto, condená-la ao abandono ou a morte. A chamada monstruosidade não se referia tão somente a pessoas que nascessem com características muito diferentes das do seres humanos, mas também, àquelas deficiências que poderiam resultar em dificuldades severas para que os mesmos conseguissem dar conta das tarefas que lhes seriam colocadas ao longo de suas vidas. Na antigüidade havia basicamente três tipos de pessoas com deficiência: os mutilados ou deficientes devido a ferimentos ou a acidentes próprios da guerra e de atividades afins; os prisioneiros de guerra com deficiências físicas, ou os detentos criminosos civis, cuja mutilação ou deficiência era causada por uma pena ou castigo; os deficientes civis por doenças congênitas ou adquiridas, ou também por acidentes os mais variados (SILVA, 1986, p. 97). pag:26 Apesar das políticas do extermínio e do abandono em relação às pessoas com deficiência, tanto na antiga Grécia quanto em Roma, alguns daqueles que pertenciam a este segmento social, acabavam sobrevivendo. Nos escritos a respeito da Grécia Antiga, existem informações que dão conta da existência de algumas pessoas com deficiência que, devido aos seus feitos, passaram para a história. Dentre as que ocuparam posição de destaque podem ser destacados Demócrito e Homero, os quais seriam cegos. Demócrito (470 a.C-360 a.C.) foi um importante físico e filósofo da antigüidade e dele escreveu Cícero, quase quatro séculos após sua morte: Demócrito, após perder a visão, não podia mais distinguir o branco do preto; mas distinguia o bem do mal, o justo do injusto, o honesto do desonesto, o útil do inútil, o grande do pequeno. Pode-se ser feliz sem distinguir a verdade das cores, mas não se poderá sê-lo sem dominar idéias verdadeiras. Esse homem acreditava até que a visão era um obstáculo às operações da alma (CÍCERO apud SILVA, 1986, p. 103). Segundo informações lendárias, esta compreensão a respeito da visão levou este famoso homem a inutilizar seus próprios olhos através da exposição dos mesmos a raios solares refletidos por uma placa brilhante de cobre. Quanto a Homero, autor das famosas obras Ilíada e Odisséia, sobre o qual não foi encontrada informações a respeito da idade em que o mesmo ficou cego e nem qual teria sido a causa de tal acontecimento, Cícero, ao analisar os males que aparentemente podem tornar uma vida miserável mas que podem ser superados graças à força de cada um, afirma que Homero era cego, segundo a tradição. Seus poemas são verdadeiros quadros: que lugares, que praias, que paragens da Grécia, que tipos de combates, que estratégias de batalhas, que manobras navais, que movimentos de homens e de animais são tão fielmente retratados pelo autor, que parece nos colocar sob os olhos, o que ele mesmo não havia nunca visto! O que é, então, que faltou a esse grande gênio não mais do que a outros homens verdadeiramente sábios, para aproveitar todos os prazeres de que a alma é capaz? (CÍCERO apud SILVA, 1986, p. 104). A razão para existência destes e de outros gregos famosos que possuíam algum tipo de deficiência, pode ser encontrada na própria realidade da sociedade grega. Nesta sociedade, que vivia sob o modo de produção escravista, a classe dominante ocupava-se da guerra e da política. Se a primeira atividade era pouco provável para uma pessoa com deficiência, principalmente tendo que atuar nos combates, a segunda poderia ser desenvolvida perfeitamente por aqueles que viessem a adquirir algum problema físico ou sensorial. Como os antigos gregos também ficaram conhecidos por cultuar a perfeição estética, certamente uma pessoa com deficiência só poderia alcançar a notoriedade de Demócrito e de Homero, se pag:27 fosse capaz de desenvolver importantes atividades que satisfaziam determinados interesses dos detentores do poder. Também em Roma podem ser encontrados diversos registros dando conta da existência de ilustres pessoas com deficiência. Dentre outras, Silva (1986, p. 132-137), destaca: Apio Cláudio, pessoa cega, foi um dos mais notáveis censores de Roma, responsável pela construção de obras famosas, tais como o aqueduto conhecido como Aqua Appia e a famosa Via Appia; Cláudio (Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus - 10 a.C. a 54 d.C.), conhecido na história romana como Imperador Cláudio I, o qual, ainda na sua tenra idade, foi considerado pela sua mãe como um monstro inacabado. Ele tinha uma voz gaguejante e era possuidor de deficiência física, causada por paralisia infantil; o Imperador Galba (Servius Sulpicius Galba - 3 a.C. a 69 d.C.), foi uma pessoa com deficiência física, possuindo deformidade nos membros inferiores e superiores; o Imperador Othon (Marcus Silvius Othon - 32 a 69 d.C. -), pessoa com deficiência física nos membros inferiores; o imperador Vitélio (Aulus Vitelius - 15 a 69 D.C.) possuía uma deficiência física, proveniente de um acidente ocorrido na sua juventude, quando era hábil condutor de bigas. Para se tentar explicar o porquê destas pessoas com deficiência terem alcançado posições tão destacadas em Roma, poder-se-ia colocar o argumento de que todos eles pertenciam a classe escravista. Tal constatação não está desprovida de fundamento. No entanto, faz-se necessário lembrar que outrora, nesta mesma sociedade, os detentores do poder necessitavam estar, do ponto de vista físico, sensorial e cognitivo, "perfeitos" para atuar nas frentes de batalhas, objetivando defender e acumular mais riquezas. Porém, atentando-se para o fato de que todos eles viveram após o século II a.C., momento em que teve inicio a profissionalização do exército romano, é perfeitamente compreensível que pessoas com deficiência pertencentes a classe dominante pudessem desfrutar de uma vida quase "normal" e ainda galgar postos importantes naquela sociedade. Isto passou a ser possível já que os dirigentes nem sempre necessitavam estar junto às frentes de batalhas e, mesmo quando acompanhavam as suas tropas em combates, não necessitavam empunhar armas. Se as informações a respeito da existência de pessoas com deficiência no modo de produção escravista são raras e incompletas, mesmo quando se referem àqueles que pertenciam a classe dominante, menos ainda podem ser encontradas quando se trata daqueles pertencentes aos setores sociais dominados e oprimidos. No entanto, alguns registros ajudam na compreensão de quais teriam sido as condições de existência de pessoas com deficiência que não pertenciam à classe detentora do poder. pag:28 Plutarco, ao se referir à forma pelas quais um escravagista tratava os seus escravos, afirma que Catão não só martirizava os seus escravos, como os instruía em certas artes, para vendê-los mais caro posteriormente; não só abandonava, como o 'ferro velho', os escravos inservíveis, como cobrava uma taxa dos que queriam se divertir com as suas escravas (PLUTARCO apud PONCE, 1992, p. 65). Embora não esteja explicitado que os "escravos inservíveis" fossem aqueles que possuíssem alguma deficiência, certamente estavam enquadrados nesta categoria os que, ao longo de sua vida, viessem a adquirir graves problemas físicos, ou sensoriais e ou cognitivos. Esta certeza pode ser deduzida do fato de que os escravos só se tornavam rentáveis ao seu proprietário na medida em que obtiam, com o trabalho, uma produção acima daquilo que necessitavam consumir para continuar vivos, ou seja, um excedente que fosse capaz de financiar toda a superestrutura que se fazia necessária nas relações de produção escravista. Este excedente certamente não poderia ser obtido por alguém com uma grave deficiência que lhe limitasse os movimentos, ou a sua capacidade sensorial e ou a possibilidade de compreensão das tarefas que deveriam ser desenvolvidas, sem que o mesmo tivesse que ser reabilitado para as atividades produtivas, o que implicaria na utilização de novas tecnologias, as quais ainda não existiam e, mesmo que já existissem, não interessaria aos detentores do poder, pois, a adaptação tecnológica, acarretaria um aumento nos custos de produção. Desta forma, deve ter sido muito mais vantajoso para o escravagista livrar-se do escravo que adquirisse alguma deficiência. Algumas pessoas com deficiência que sobreviviam no modo de produção escravista e que não encontravam condições para serem escravos nem amos, acabavam vivendo sobre a proteção de um poderoso patrício. Isto passou a ocorrer, principalmente, na Roma dos Césares, em tempos mais sofisticados, onde "deficientes mentais, em geral tratados como 'bobos', eram mantidos nas vilas ou nas propriedades das abastadas famílias patrícias, como protegidos do pater famílias" (SILVA, 1986, p. 130). Ainda conforme este mesmo autor, em Roma cegos, surdos, deficientes mentais, deficientes físicos e outros tipos de pessoas nascidas com malformações eram também de quando em quando ligados a casas comerciais, a tavernas, a bordéis, bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes humilhantes, costume esse que foi adotado por muitos séculos na História da Humanidade (SILVA, 1986, p. 130). pag:29 Na antigüidade, em alguns lugares onde ocorria grande concentração humana, pessoas com deficiência passaram a ser utilizadas para mendigar ou enquanto objetos de espetáculos circenses. Quando estas, em razão de sua anormalidade, começaram a ser utilizadas economicamente como pedintes ou enquanto seres bizarros em espetáculos, as mesmas passaram a ter algum valor mercantil. Este acontecimento pode ser observado nas palavras do historiador Durant, o qual afirma que "existia em Roma um mercado especial para compra e venda de homens sem pernas ou braços, de três olhos, gigantes, anões, hermafroditas" (DURANT apud SILVA, 1986, p. 130) . Como já foi dito anteriormente, a deficiência de uma pessoa no modo de produção escravista podia ser provocada por mutilações. Dentre as diversas razões que levavam alguém a perder ou ter parte de seu corpo danificado encontram-se aquelas aplicadas enquanto atitudes punitivas. Segundo Silva (1986, p. 132-133), a amputação das orelhas e nariz foi muito utilizada pelas legiões romanas, enquanto vingança ou castigos a soldados capturados em tempos de guerras. Ainda, conforme este mesmo autor, Caio Júlio César (Caíus Julius Caesar - 102 a 44 a.C.) confessa em sua obra "De Bello Gallico" que aplicava essa pena em seus próprios soldados, quando estes cometiam faltas muito graves contra a disciplina militar ou desertavam. As mutilações punitivas não se limitavam apenas a estas amputações estigmatizadoras. Ocorria também a perda de parte do membro superior direito para aqueles que praticavam o roubo ou que desobedeciam a seus superiores. Também podem ser encontradas no modo de produção escravista, explicações místicas a respeito da existência de pessoas com deficiência, procedimento este que era muito comum nas sociedades primitivas. Esta prática pode ser observada no relato a respeito do que teria ocorrido com um importante rei espartano. Licurgo, rei mitológico da Trácia, foi castigado com a cegueira por ter proibido em seu reino o culto a Dionísio, deus do vinho e correspondente ao Baco dos romanos. Essa proibição ocorreu depois do corajoso rei ter tomado atitudes bastante agressivas contra o mencionado culto. Mandara, por exemplo, arrancar de seu reino todas as vinhas e maltratara pessoalmente o famoso e muito popular deus do vinho (SILVA, 1986, p. 96). Na antigüidade também os membros do nascente cristianismo não escaparam das punições que tornaram muitos deles pessoas com deficiência. Tratavam-se de práticas mutilantes que foram adotadas pela classe dominante, na tentativa de impedir o desenvolvimento de uma religião que não era reconhecida e nem tolerada pelo estado romano. Esta religião, que nasce no apogeu deste Império, foi nos seus três primeiros séculos de existência severamente perseguida devido a pregação de um ideário que atraía principalmente pag:30 os setores explorados, oprimidos e marginalizados daquela sociedade. A sua doutrina estava assentada nos seguintes princípios: a existência de um único deus, o qual é o criador de tudo o que existe e a quem todos, sem distinção, devem obediência; o amor ao próximo; o perdão das ofensas; a valorização e compreensão do significado da pobreza; a simplicidade de vida, da humildade e a separação entre corpo e alma. Já no seu nascedouro, procurou diferenciar-se das tradicionais religiões regionalizadas e "o próprio Concílio de Jerusalém, citado nos Atos dos Apóstolos, estabeleceu as bases para transformar o Cristianismo incipiente em uma religião de caráter absolutamente internacional, universal" (SILVA, 1986, p. 155). O cristianismo, nascido da cultura judaica por meio da divulgação de seus princípios, numa sociedade marcada por profundos contrastes como era o modo de produção escravista, ia aos poucos conquistando a grande massa dos desfavorecidos. Este crescimento culminou com a sua incorporação no século III d.C., enquanto religião oficial do já decadente Império Romano. No entanto, nos primeiros tempos de sua existência, a religião cristã, devido ao fato de alguns de seus ensinamentos contradizerem a ordem vigente, teve seus seguidores severamente perseguidos. Essa perseguição se fez presente já no seu nascedouro, com a sua expulsão das Sinagogas, o que a levou a se constituir enquanto uma religião com características próprias. No entanto, mais cruel foi aquela efetuada pelo poder romano, o qual, dentre outras atitudes punitivas aos cristãos, mutilava o seu corpo. Eusébio, bispo de Cesaréa, que viveu entre 267-340, descreve o seguinte a respeito destas mutilações: ordenou-se que a partir de então vazassem nossos olhos e aleijassem uma de nossas pernas. Esta foi a humanidade e esse lhes pareceu um gênero brando de suplício contra nós. Dessa forma, por causa dessa brandura dos homens ímpios, de maneira alguma seria possível contarmos o número daqueles aos quais foi primeiramente extraído o olho direito e depois cauterizado com um ferro, ou daqueles aos quais foi estropiada (a musculatura) a barriga da perna esquerda com um ferro em brasa, sendo imediatamente após condenados às minas existentes na província, não tanto para trabalharem mas para serem atormentados (EUSÉBIO DE CESARÉA apud SILVA, 1986, p. 156). Conforme este relato, estas punições resultavam em danos severos às condições físicas ou sensoriais destes seres humanos, tornando-os pessoas com deficiência. Segundo Silva (1986), por vezes os algozes desses muitos cristãos que estavam condenados às minas pelo resto de seus dias permitiam que se reunissem para orar e mesmo para formar pequenos grupos que foram sendo chamados de 'igrejas'.Depois, todavia, dependendo sempre dos tipos de homens encarregados de sua vigilância, bem como da produção das diversas minas, começou a ocorrer a dispersão violenta, sua transferência de mina para mina e finalmente a decapitação dos pag:31 condenados enfermos e menos produtivos, incluindo sempre os portadores de deficiências sérias e limitadoras da capacidade de trabalho ( p. 156). Este relato dá uma valorosa contribuição para a idéia já exposta, de que a classe dominante procurava livrar-se de seus escravos que possuíssem alguma deficiência e que não fossem capazes de alcançar um determinado grau de produtividade, ao ponto de terem uma existência rentável para os seus amos. Na antigüidade, a estigmatização das pessoas com deficiência, herdada das sociedades primitivas que explicavam a existência das mesmas sempre de forma mística, foi agravada com a aplicação das penas mutilantes àqueles que cometessem algum crime. Isto ocorreu porque se já não bastasse o fato da causa da deficiência destas pessoas poder ser atribuída a vontade dos deuses, agora, em alguns casos, devido a mutilação de que eram vítimas, além de ficarem com aparência disforme, fora dos padrões estéticos exigidos, podiam ser constantemente considerados como criminosos e malfeitores. O lado mais perverso da prática punitiva mutilante estava no fato das pessoas, após terem seu corpo danificado fisicamente e ou sensorialmente, tornarem-se improdutivas para uma sociedade fundada nas relações escravista de produção. Este fato, como já demonstrado no caso da execução dos cristãos, que eram enviados a trabalhar nas minas, poderia culminar com a sua eliminação, já que em razão de sua deficiência passavam a não serem tão rentáveis para aquelas relações de exploração. Em conformidade com o que foi pesquisado a respeito das condições de existência das pessoas com deficiência no modo de produção escravista, pode-se perceber que existiu uma prática de eliminação ou de abandono daqueles que não possuíam um aparato físico, ou sensorial e ou cognitivo que lhes permitiam desenvolver as atribuições que lhes eram impostas. No entanto, como também ficou demonstrado, neste período histórico alguns daqueles que pertenciam a tal segmento social acabaram sobrevivendo. Também procurou-se demonstrar que estas diferenças de tratamento estão condicionadas por fatores econômicos, político e sociais, onde, com o desenvolvimento do modo de produção escravista, a classe social a que pertencia a pessoa com deficiência tornou-se determinante para a existência da mesma. A política de eliminação ou de abandono dos considerados improdutivos foi uma necessidade imposta pela lógica de funcionamento das relações escravistas de produção. Isto ocorria porque a classe dominante necessitava de pessoas fortes, com todos os seus sentidos preservados e bom atributo cognitivo, tanto para poder dar conta das atividades inerentes ao exercício do poder quanto para servi-la como objeto de exploração. Diante desta explicação, pag:32 parece ser possível encontrar na própria realidade as explicações para os procedimento da eliminação ou do abandono, tão costumeiro na Antiga Grécia e em Roma. A classe dominante, na maior parte do modo de produção escravista, necessitou estar ela mesma em armas para poder defender os seus interesses. Como já demonstrado, esse fato dificultava a existência de pessoas com deficiência pertencentes a esta classe da sociedade. Porém, com a profissionalização dos exércitos, ocorrido principalmente em Roma, propiciaram-se determinadas condições para que aqueles com alguma deficiência pudessem sobreviver e até galgar importantes postos, como foi o caso, dentre outros, dos imperadores Cláudio I e Galba. Em relação àqueles que pertenciam a classe dos dominados, pôde perceber-se que os mesmos possuíram uma condição de existência extremamente difícil, pois era-lhes negada a própria condição de escravos. Os que conseguiram sobreviver foram obrigados a submeter-se a uma existência que os colocava abaixo daqueles que estavam submetidos a escravidão. Situação um pouco diferente viveu aquele que, pertencente a classe dominante, adquirisse alguma deficiência ao longo de sua vida. Foi o caso, dentre outros, do imperador Vitélio e de Demócrito, os quais foram pessoas com deficiência adquirida ao longo da vida e que não as impediu de se tornarem pessoas destacadas naquelas sociedades. Diante do exposto a respeito das condições de existência das pessoas com deficiência no modo de produção escravista, não resta dúvidas de que estas, ou pelo menos a grande maioria das mesmas, estiveram em contradição com a lógica objetiva de funcionamento deste período da história. Este fato decorreu da forma pelas quais os homens estavam organizados para produzir os seus meios de vida, a qual exigia um biotipo humano com determinadas características físicas, sensoriais e cognitivas, que lhes possibilitasse executar as tarefas que lhes estavam colocadas, principalmente aquelas relacionadas à produção e às guerras, encontradas na base da sustentação deste modo de produção. Diante destas necessidades, não restou para a grande maioria das pessoas com deficiência outro "destino" a não ser a eliminação ou o abandono. Como já apresentado, nos momentos finais do modo de produção escravista, quando o império Romano já dava seus últimos suspiros, o cristianismo tornou-se a religião oficial daquele Estado. Esse fato criou melhores condições para que alguns de seus princípios fossem divulgados. Dentre estes, talvez o mais importante para as pessoas com deficiência daquele período foi o que pregava a separação entre o corpo e a alma, já que o mesmo serve de fundamentação teórica para um novo proceder em relação a essas pessoas, principalmente com o advento do modo de produção feudal. pag:33 CAPÍTULO III AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL: SUPERSTIÇÃO, CARIDADE E CASTIGO Após alguns milhares de anos de existência do escravismo, por volta do século V da era cristã, na Europa, começou a aparecer uma nova forma dos homens se organizarem para produzir os seus meios de vida, conhecida como modo de produção feudal. Com esta nova formação social, saíram de cena os amos, plebeus e escravos, para dar lugar às figuras do sacerdote, do senhor e do trabalhador servo. Com a implantação do feudalismo, devido a sua forma de organização econômica, política, social e ideológica, ocorrem algumas mudanças na forma de compreender e tratar as pessoas com deficiência. Com a finalidade de evidenciar e compreender tais modificações, neste capítulo abordar-se-á: a origem e as principais características objetivas do modo de produção feudal, como é que a sua ideologia (cristianismo) compreende as pessoas com deficiência e como eram as condições de existência das mesmas nesta referida formação social. 3.1. DA CONSTITUIÇÃO E DAS CARACTERÍSTICAS DO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL O modo de produção escravista, depois de ter assegurado a grandeza do mundo antigo, como resultado do desenvolvimento de suas contradições começou a entrar em declínio. Nos últimos séculos de sua existência, a propriedade privada havia se concentrado e, com a conseqüente aumento da pobreza, ampliado o número de escravos. Diante de tais condições, a miséria foi crescendo de tal forma, que a exploração dos enormes 'latifúndios' por verdadeiros exércitos de escravos já não produzia rendas compensadoras. O cultivo em pequena escala voltou a ser o único que compensava, o que é a mesma coisa que dizer, que a escravidão se tornou desnecessária. O escravo passou a produzir menos do que custava a sua manutenção, e a partir desse momento ele desapareceu como um sistema de exploração em grande escala (PONCE, 1992, p. 83). pag:34 No Império Romano, nos seus últimos séculos de existência, devido ao declínio de sua produção e as constantes conquistas dos povos bárbaros, ocorreu a destruição de grande quantidade de forças produtivas. Nesta época, que representa os momentos finais do modo de produção escravista, "a agricultura declinara, a indústria estava em decadência pela falta de mercados, o comércio adormecera ou fora violentamente interrompido, a população, tanto a rural como a urbana diminuíra" (MARX e ENGELS, 1984, p. 33). Com o esgotamento das relações escravistas de trabalho, fez-se necessário o estabelecimento de um novo modo de os homens produzirem os meios de vida de que a sociedade necessitava, o qual foi sendo constituído em áreas conquistadas pelos povos bárbaros em seus constantes ataques às regiões pertencentes ao Império Romano. Ainda, mesmo no seio do próprio escravismo, começaram a surgir novas relações de produção, pois nos estertores de sua existência as grandes extensões de terras estavam subdivididas em parcelas pequenas, confiadas a colonos livres que pagavam ao amo uma renda fixa anual. Esses colonos, apesar de não serem propriamente escravos, também não eram homens totalmente livres. Entre as ruínas do mundo antigo, eles foram o primeiro indício o novo regime econômico que começava a se estabelecer, fundado não mais sobre o trabalho do escravo e do colono, mas sobre o do servo e do vilão (PONCE, 1992, p. 84). Com o fim do escravismo, a economia passou a ser centrada naquilo que a terra podia produzir e a grande maioria da população se encontrava dispersa no campo, pertencendo a regiões denominadas de glebas. Estas eram possessões territoriais e pertenciam aos senhores feudais, os quais governavam o seu feudo com base em costumes pagãos e em orientações emanadas da religião cristã, procurando disciplinar os servos com a finalidade de fazer com que os mesmos atuassem no sentido de atender aos seus interesses. Nesta sociedade, as duas classes fundamentais eram o senhor feudal e o servo da gleba. O primeiro, que havia se constituído enquanto tal por ser um senhor da guerra, além de dono da terra, que continuava sendo a forma fundamental da riqueza, o senhor também era dono dos instrumentos essenciais da produção, em particular dos moinhos. O trigo, por exemplo, que os camponeses colhiam devia ser moído nos moinhos do senhor (PONCE, 1992, p. 82). Já os últimos, que compunham a grande maioria da população, segundo Marx e Engels (1984, p. 34), estavam constituídos por pequenos camponeses, que eram servos da gleba, a única classe responsável por toda a produção dos meios de vida de que a sociedade necessitava e dispunha. pag:35 Neste modo de produção, a classe dominante obtinha, por meio do trabalho dos servos, os meios de vida que eram necessários para a sua existência. Com esta finalidade, o senhor feudal distribuía a terra entre os camponeses com a condição de trabalharem para ele. Para obter o produto suplementar, o senhor feudal tinha que ter camponeses com as suas parcelas de terra, instrumentos de trabalho e gado. O camponês sem terra, sem cavalo, sem instrumentos de trabalho não servia para a exploração feudal ( ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986, p. 46). A produção obtida com o trabalho do servo da gleba tinha que ser suficiente para sustentar, além de si mesmo e a sua família, todo um sistema fundado numa relação de vassalagem. Desta forma, o que o servo produzia por meio de um trabalho sem descanso ia passando, como tributo, de mão em mão, do vilão ao castelão, do castelão ao barão, deste ao visconde, do visconde ao conde; deste ao marquês, do marquês ao duque, e do duque ao rei (PONCE, 1992, p. 86). Esta relação de hierarquia, que sofria algumas variações dependendo das épocas e das regiões, implicava a vassalagem em relação ao superior e a patronagem em relação ao inferior. Desta forma, uma pessoa podia ser, a um só tempo, vassalo e amo. Da mesma forma que o mundo antigo vivia às custas do trabalho dos escravos, a Idade Média repousava sobre os ombros dos servos, que eram os que faziam a terra produzir. Na relação de servidão. os camponeses servos da gleba encontravam-se submetidos ao senhor feudal. Eles possuíam sua casa, o gado, alguns instrumentos de trabalho e tinham uma parcela de terra que lhes era entregue pela comunidade ou diretamente pelo latifundiário, na qual, cada um deles, podia organizar o seu trabalho e o de sua família. Embora os servos fossem trabalhadores subjugados e explorados, em comparação com os escravos possuíam uma existência menos trágica, isto porque os camponeses servos, assim como os escravos, dependiam pessoalmente do seu senhor e eram obrigados a trabalhar para ele. Diferentemente do escravo, o camponês servo não era propriedade completa do senhor feudal. Este podia comprar ou vender o camponês servo, mas por lei não o podia matar. Ao contrário do escravo, o camponês servo possuía alguma propriedade. Além disso, era membro da comunidade e tinha o apoio desta (ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986, p. 47). Se a nova relação de produção, que se desenvolveu com o fim do escravismo havia trazido algumas pequenas conquistas aos trabalhadores, para os detentores do poder a pag:36 servidão representou uma real vantagem sobre a escravidão. Tal afirmação decorre do fato de que no escravismo era necessário um grande capital para adquirir e manter os escravos necessários, ao passo que a servidão não requeria qualquer gasto; o servo custeava a sua própria vida, e todas as vicissitudes do trabalho corriam por sua conta. A servidão constituía, pois, a única maneira de que o patrão dispunha para tirar proveitos dos seus fundos, ao mesmo tempo que também constituía o único modo dos que não possuíam terras proverem o seu próprio sustento (PONCE, 1992, p. 85). No campo da produção econômica, o feudalismo, em comparação com o escravismo, representou um avanço histórico, já que este "pressupunha um nível mais elevado de desenvolvimento das forças produtivas e criava certo interesse do produtor pelos resultados do seu trabalho" (ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986, p. 47). O desenvolvimento das forças produtivas resultou de uma maior demanda de alimentos, o que estimulou o aperfeiçoamento das técnicas agrícolas para aumentar a produção. Assim, o arado de madeira foi substituído pela charrua (arado de ferro), facilitando o trabalho de aragem; a atrelagem dos animais foi aperfeiçoada, permitindo um melhor uso dos mesmos enquanto tração e os cavalos passaram a ser ferrados, o que os tornaram ainda mais úteis. Apesar destes acontecimentos e do fato de que a principal fonte de renda do senhor feudal era a exploração de seus servos, o mesmo preocupava-se, fundamentalmente, em desenvolver as artes guerreiras, com a qual procurava saquear outros nobres e seus próprios servos, objetivando ampliar as suas riquezas. O nobre, apesar de ser um grande proprietário de terras e possuir uma enorme quantidade de servos trabalhando para si, não se preocupava com a administração de sua gleba. Isto ocorria, tendo em vista que, "nos seus domínios, abandonava todas as suas funções, inclusive a de administrar justiça, em mãos de administradores e intendentes. O nobre apenas cuidava da arte militar, porque a guerra era a sua profissão" (PONCE, 1992, p. 94). Em toda a formação social classista, o "ideal" de homem é sempre representado por aquele que corresponde ao perfil dos detentores do poder. Na sociedade feudal, assim como em algumas formações sociais que a antecederam, este modelo foi o do homem preparado para a guerra (cavaleiro), o qual era necessário, não só para os saques, mas também no sentido de manutenção do status quo, ou seja, a subjugação dos trabalhadores servos da gleba aos interesses dos senhores feudais. Para que os filhos da nobreza pudessem atingir o ideal de homem preconizado pela sua classe, os mesmos passavam por um longo processo de preparação, o qual era iniciado logo nos primeiros anos de vida. Para tanto, pag:37 o jovem nobre vivia sob a tutela materna até os 7 anos, ocasião em que entrava como pajem ao serviço de um cavaleiro amigo. Aos quatorze, era promovido a escudeiro, e nessa qualidade acompanhava o seu cavaleiro às guerras, torneios e caçadas. Por volta dos vinte e um anos, era armado cavaleiro (PONCE, 1992, p. 94). Além das duas principais e antagônicas classes sociais que existiram ao longo do feudalismo, é indispensável destacar, para efeito deste trabalho, o papel que a Igreja Católica desenvolveu ao longo deste período histórico. O cristianismo, que já havia se tornado a religião oficial do Império Romano nos últimos séculos de existência do modo de produção escravista, constituiu-se enquanto a mais poderosa instituição de toda a Idade Média. Este poder decorria basicamente de três elementos que se articulavam mutuamente: direção centralizada, linha teórica ajustada à realidade social e, fundamentalmente, do seu poder econômico. A teologia cristã, que nascera na antigüidade a partir da crítica ao status quo já nos últimos momentos do modo de produção escravista, havia respaldado aquele processo de exploração. Isto pode ser comprovado em alguns documentos da própria Igreja Católica daquele período, dentre os quais pode ser destacado o Concílio de Gangra, em 324, o qual resolveu que, "se alguém, sob o pretexto da piedade religiosa, ensinasse o escravo a não estimar o seu senhor, ou a se subtrair aos seus serviços, ou a não servir de bom ânimo e com toda a boa vontade, que caia sobre ele o anátema" (PONCE, 1992, p. 83-84). Desta forma uma teologia que já havia aceitado o trabalho escravo, não encontrou nenhuma dificuldade em "abençoar" as relações de produção feudais. Pelo contrário, tratou-se de aproveitar o fato de ser a única instituição possuidora de uma direção centralizada, na figura do Papa e com capacidade de extrapolar as inúmeras fronteiras, para se consolidar enquanto força econômica e política. A Igreja Católica, comandando um clero disciplinado, buscava confortar os seus fiéis a respeito dos infortúnios da existência terrena com a promessa de uma vida justa no céu, ao mesmo tempo que ia acumulando grandes quantidades de riquezas. As mesmas eram conseguidas, dentre outras atividades, pelas ações dos monastérios no comércio, na indústria, na agricultura e nos empréstimos de recursos a nobres em dificuldades econômicas. Com o desenvolvimento de tais atividades, a Igreja, "em poucos séculos, passou a controlar quase toda a economia feudal" (PONCE, 1992, p. 88). A pujança econômica da Igreja Católica já havia se tornado realidade ainda na segunda metade do primeiro milênio da era cristã. Neste momento, funcionando enquanto estabelecimentos de economia fechada, "os monastérios já eram, no começo do século VIII, pag:38 os postos avançados mais firmes do comércio e da indústria: em 794, no Monastério de Tours, cerca de 20 mil homens trabalhavam sob as ordens de Alcuíno" (PONCE, 1992, p. 88). Ainda segundo Ponce (1992, p. 89), havia uma supremacia da economia dos monastérios em relação a dos senhores feudais. A dos primeiros estava assentada numa organização disciplinar rígida do trabalho. Por sua vez, a dos últimos repousava-se, em primeiro lugar, na produção de um aglomerado de servos que agiam sem se ajustarem a um plano comum e, em segundo lugar, nas riquezas provenientes dos saques. Enquanto as riquezas obtidas pelo senhor feudal eram para serem gastas, aquelas que chegavam até os monastérios, acabavam sendo entesouradas e aumentadas . Conforme este mesmo autor: "além disso, é bem sabido que o celibato foi imposto ao clero principalmente para evitar que as riquezas acumuladas passassem a herdeiros particulares, ao invés de continuarem concentradas na comunidade (PONCE, 1992, p. 89). Foi desta forma e com tais características, que os povos europeus vivenciaram o período histórico conhecido como modo de produção feudal, o qual perdurou até por volta da metade do segundo milênio da era cristã. Nele, como ficou demonstrado, os servos carregavam sobre os ombros a nobreza e o clero, ou seja: "a sociedade feudal consistia dessas três classes, sacerdotes, guerreiros e trabalhadores, sendo que o homem que trabalhava produzia para ambas as outras classes - eclesiástica e militar" (HUBERMAN, 1981, p. 11). 3.2. AS EXPLICAÇÕES DA TEOLOGIA CRISTÃ PARA A EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: O RESULTADO DA VONTADE DIVINA OU DA AÇÃO DE FORÇAS DEMONÍACAS Antes de adentrar na discussão a respeito do como a teologia cristã compreende as pessoas com deficiência, faz-se necessário dizer que o pensamento hegemônico numa determinada sociedade, está sempre articulado a realidade econômica, política e social, predominante na mesma, ou seja, "as idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante" (MARX e ENGELS, 2001, p. 36). Em conseqüência da grande concentração econômica contida na mão da Igreja Católica medieval e pelo fato da mesma estar umbilicalmente ligada à nobreza feudal, esta exercia o poder político e ideológico naquela sociedade. Tomando como verdadeiro tal pressuposto, antes de procurar investigar as condições de existência das pessoas com deficiência neste pag:39 modo de produção, buscar-se-á verificar como a teologia cristã compreende as razões de existência de tal segmento social. Como já apontado no capítulo anterior, o cristianismo tem suas raízes na cultura judaica, da qual os cristãos absorveram inúmeros dogmas. Em função disso, iniciar-se-á, este item desta pesquisa, verificando alguns relatos bíblicos presentes no Velho Testamento, onde se encontram muitos dos ensinamentos religiosos do judaísmo. A Religião Judaica surgiu na antigüidade no seio do povo hebreu e apresentou como principal característica o monoteísmo. As suas origens remontam à existência do patriarca Abraão e com os escritos de Moisés ganhou uma forma mais definitiva. Nestes, que eram um conjunto de normas e leis para orientar e disciplinar a vida daquele povo, as quais deveriam ser seguidas com a finalidade de alcançar a paz celestial, são relatados, a partir de uma explicação metafísica, muito dos acontecimentos vivenciados pelos judeus, como: parte do período dedicado ao pastoreio, a permanência no Egito, a peregrinação no deserto em busca da terra prometida e os conflitos com outros agrupamentos humanos, quando procuraram se instalar nas margens do rio Jordão. Neste conjunto de normas e leis são descritos como deve ser e agir o povo hebreu: quais as permissões e os sacrifícios necessários para se redimir dos pecados cometidos e quais as prescrições, as purezas e impurezas que estão presentes nos animais e nos seres humanos. As pessoas com deficiência, em conformidade com tais códigos, eram consideradas como seres humanos profanados e ficavam sujeitas a toda espécie de discriminações. Para os seguidores daquela cultura religiosa, "tanto a doença crônica quanto a deficiência física ou mental, e mesmo qualquer deformação por menor que fosse, indicava um certo grau de impureza ou de pecado" (SILVA, 1986, p. 74). Um exemplo desta concepção a respeito das pessoas com deficiência está contida no livro de Moisés chamado "Levítico" e que hoje compõe o Antigo Testamento da Bíblia Sagrada. No mesmo, esta importante personalidade da história judaica estabelece as leis e as orientações para os sacerdotes conforme "o Senhor havia lhe dito": Homem algum de tua linhagem, por todas as gerações, que tiver um defeito corporal, oferecerá o pão de seu Deus. Desse modo, serão excluídos todos aqueles que tiverem uma deformidade corporal: cegos, coxos, mutilados, pessoas de membros desproporcionados, ou tendo uma fratura do pé ou da mão, corcundas ou anões, os que tiverem uma mancha no olho, ou a sarna, um dartro, ou os testículos quebrados. Homem algum da linhagem de Abraão, o sacerdote, que for deformado, oferecerá os sacrifícios consumidos pelo fogo sendo vítima de uma deformidade, ele não poderá apresentar-se para oferecer o pão de seu Deus. Mas poderá comer o pão de seu Deus, proveniente das ofertas santíssimas e das ofertas santas. Não se aproximará, porém, do véu nem do altar, porque é deformado. Não profanará meus santuários, porque eu sou o Senhor que os santifico" (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Levítico, 21:17-23). pag:40 A compreensão de que as pessoas com deficiência eram impuras podia interferir até no casamento das mesmas, pois "segundo a Lei Rabínica, por exemplo, um defeito físico do marido ou da mulher pode, em certas circunstâncias, até invalidar um contrato de casamento" (SILVA, 1986, p. 74). Em conformidade com a cultura hebraica, as deficiências, dependendo de suas causas, podiam ser agrupadas em dois grandes blocos distintos: as resultantes de ferimentos provenientes do trabalho e das guerras e as atribuídas a razões metafísicas. Este último, pode ser dividido em dois subgrupos: os cegos, os surdos, e os com graves dificuldades físicas e ou cognitivas, os quais, possuindo uma deficiência "natural", eram considerados os castigados diretamente por Deus ou possuidores de maus espíritos e aqueles que recebiam penas mutilantes, impostas pelos detentores do poder aos que violavam as leis "reveladas". Existem verdadeiros alertas ao povo a respeito das punições que o próprio Deus descarregaria aos pecadores. Dentre estes pode ser destacado a seguinte advertência de Moisés: "o Senhor te ferirá de loucura, de cegueira e de embotamento de espírito. Andarás às apalpadelas em pleno meio dia como o cego na escuridão; fracassarás em tuas empresas e não cessarás de ser oprimido e despojado, sem ninguém que te defenda" (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Deuteronômio, 28: 28-29). Um exemplo das punições mutilantes também pode ser encontrado neste mesmo livro da Bíblia Sagrada, onde é apresentado um castigo severo (amputação da mão) para um procedimento considerado altamente pecaminoso por parte da mulher. Em conformidade com o mesmo, "se dois homens estiverem em disputa, e a mulher de um vier em socorro de seu marido para livrá-lo do seu assaltante e pegar este pelas partes vergonhosas, cortarás a mão dessa mulher, sem compaixão alguma" (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Deuteronômio, 25: 11-12). Tendo em vista que essa forma de compreender as causas das deficiências e de tratar aqueles que as possuíam estavam estabelecidas nas leis e costumes do povo hebreu, parece ser possível afirmar que na cultura judaica, o preconceito e a discriminação em relação as pessoas com deficiência foi uma prática bastante recorrente. No entanto, apesar de serem contemporâneos dos gregos e dos romanos, os quais adotaram a prática da eliminação e ou do abandono das pessoas com deficiência, não existem comprovações de que tais procedimentos fossem comuns entre os judeus. A principal explicação para este fato não deve ser atribuída simplesmente ao aspecto religioso, como fazem muitos historiadores do assunto. Talvez fosse mais prudente ao se tentar desvelar a questão, partir da vida real daquele povo, onde se pode chegar a conclusão pag:41 de que este fato ocorria pela combinação de aspectos econômicos, políticos e sociais, que eram distintos entre os antigos judeus e seus contemporâneos da Grécia e de Roma. Embora este povo, em alguns momentos, tenha sido escravizado, o certo é que tais relações de produção nunca foram hegemônicas no âmbito da sua própria organização social e, desta forma, o seu pensamento religioso não pode ser compreendido como expressão do modo de produção escravista, mas sim, enquanto resultado da forma pela qual o mesmo estava organizado para produzir os seus meios de vida. Também é importante considerar que a religião judaica não se pretendia universal, estando apenas "destinada" ao povo judeu. A idéia de universalizar muitos dos ensinamentos do judaísmo, começou com o cristianismo e se consolidou na Europa com o modo de produção feudal. Como já mencionado, muito do pensado e praticado pelos judeus foi apropriado pelos cristãos. Dentre estas apropriações encontra-se a forma de compreender as deficiências e até a de como tratar aqueles que a possui. Dentre as formulações do cristianismo em relação as pessoas com deficiência, cabe destacar aquelas que estão contidas na Bíblia, na parte referente ao Novo Testamento. Neste documento encontram-se alguns costumes, atitudes e considerações a respeito das pessoas com deficiência, particularmente nos escritos dos evangelistas. "Segundo seus relatos, Jesus fez mais de 40 milagres notórios. Deles todos, pelo menos 21 são relacionados a pessoas portadoras de deficiências físicas ou sensoriais" (SILVA, 1986, p. 88). Analisando-se estes escritos, pode-se afirmar que as explicações da existência das pessoas com deficiência estavam centradas na interferência de maus espíritos ou como um castigo para pagamento de pecados seus ou de ancestrais e ou, ainda, enquanto instrumento de Deus para que pudesse ser despertada a caridade nos outros. Dentre os milagres contidos nos Evangelhos que tratam a causa das deficiências enquanto a interferência dos maus espíritos, podem ser destacadas as palavras de Lucas a respeito do cego Bartimeu de Jericó: Saíram eles, pois, a ver o que havia ocorrido. Chegaram a Jesus e acharam a seus pés, sentando, vestindo e calmo, o homem de quem haviam sido expulsos os demônios: e tomados de medo, ouviram das testemunhas a narração deste exorcismo. Então todo povo da região de gerasenos rogou a Jesus que se retirasse deles, pois estavam possuídos de grande temor. Jesus subiu à barca para regressar. Neste momento, pedia-lhe o homem, de quem tinham saído os demônios, para ficar com ele. Mas Jesus despediu-o, dizendo: volta para casa, e conta quanto Deus te fez. E ele se foi, publicando por toda cidade essas grandes coisas (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Lucas, 8: 35-39). pag:42 Esta concepção a respeito das causas das deficiências também aparece nos escritos de Mateus, o qual fala sobre a cura de um cego e mudo "endemoniado": "Apresentando-lhe, depois, um possesso cego e mudo, Jesus o curou de tal modo, que ele falava e via" (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Mateus, 12: 22). A associação entre deficiência e forças demoníacas ainda aparece nas palavras deste mesmo evangelista, quando escreve a respeito de um mudo de Cafarnaum: logo que se foram apresentaram-lhe um mudo, possuído do demônio. O demônio foi expulso, o mudo falou e a multidão exclamava com admiração: jamais se viu algo semelhante em Israel. Os fariseus, porém, diziam: é pelo príncipe dos demônios que ele expulsa os demônios (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Mateus, 9: 32-34). Um outro exemplo de deficiência atribuída a presença de maus espíritos, aparece nos evangelhos quando estes se referem ao surdo-mudo de Cesaréia. Marcos refere-se a esta passagem da seguinte forma: ele lhes perguntou: que estais discutindo com eles? Respondeu um homem dentre a multidão: Mestre eu te trouxe meu filho, que tem um espírito mudo. Este, onde quer que o apanhe, lança-o por terra e ele espuma, range os dentes e fica endurecido. Roguei aos seus discípulos que os expelissem, mas não o puderam. Respondeu-lhes Jesus: Ó geração incrédula, até quando estarei convosco? Até quando vos hei de aturar? Trazei-mo cá! Eles trouxeram. Assim que o menino avistou Jesus, o espírito agitou fortemente. Caiu por terra e revolvia-se espumando. Jesus perguntou ao pai: Há quanto tempo lhe aconteceu isto? Desde a infância, respondeu-lhe. E o tem lançado muitas vezes ao fogo e a água e ao fogo, para a matar. Se tu, porém, podes alguma coisa, ajuda-nos, compadece-te de nós! Disse-lhe Jesus: Se podes alguma coisa! Tudo é possível ao que crê. Imediatamente exclamou o pai do menino: Creio! Vem em socorro a minha falta de fé! Vendo Jesus que o povo afluía, intimou o espírito imundo e disse-lhe: Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: sai deste menino e não tornes a entrar nele. E, gritando e maltratando-o extremamente, saiu. O menino ficou como morto, de modo que muitos diziam: Morreu (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Marcos, 9: 16-26). Lucas, por sua vez, refere-se ao que teria ocorrido com o surdo-mudo de Cesaréia com as seguintes palavras: no dia seguinte, descendo ele no monte, veio ao encontro de Jesus uma grande multidão. Eis que um homem exclamou do meio da multidão: Mestre, rogo-te que olhes para meu filho, pois é o único que eu tenho. Um espírito se apodera dele e subitamente dá gritos, lança-o por terra, agita-o com violência, fá-lo espumar e só o larga depois de o deixar todo ofegante. Pedi a seus discípulos que o expelissem, mas não o puderam fazer. Respondeu Jesus: Ó geração perversa e incrédula, até quando estarei convosco e vos aturarei? Traze cá teu filho. E quando ele ia chegando, o demônio lançou-o por terra e agitou-o violentamente. Mas Jesus intimou o espírito imundo, curou o menino e o restituiu a seus pais. Todos ficaram pasmados ante a grandeza do senhor (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Lucas, 9: 37-43). pag:43 Ainda na mesma direção, a respeito das causas das deficiências, escreve este evangelista a respeito de uma ação de Jesus em relação a uma mulher com espinha curvada: havia ali uma mulher que, havia dezoito anos, era possessa de um espírito que a detinha doente: andava curvada e não podia absolutamente erguer-se. Ao vê-la, Jesus a chamou e disse-lhe: Estás livre da tua doença. Impôs-lhe as mãos e no mesmo instante ela se endireitou, glorificando a Deus (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Lucas, 13: 11-13). Já em relação ao pecado enquanto o gerador de deficiência, encontra-se nos evangelhos um milagre recebido por um paralítico de Cafarnaum. O evangelista Mateus utiliza as seguintes palavras para se referir ao mesmo: Jesus tomou de novo a barca, passou o lago e veio para sua cidade. Eis que lhe apresentaram um paralítico estendido numa padiola. Jesus, vendo a fé daquela gente, disse ao paralítico: Meu filho, coragem! Teus pecados te são perdoados. Ouvindo isto, alguns escribas murmuraram entre si: Este homem blasfema. Jesus, penetrando-lhes os pensamentos, perguntou-lhes: Por que pensais mal em vossos corações? Que é mais fácil dizer: teus pecados te serão perdoados, ou: Levanta-te e anda? Ora, para que saibas que o filho do homem tem na terra o poder de perdoar os pecados: Levanta-te - disse ele ao paralítico -, toma a tua maca e volta para tua casa. Levantou-se aquele homem e foi para sua casa. Vendo isto, a multidão encheu-se de medo e glorificou a Deus por ter dado tal poder aos homens (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Mateus, 9: 1-8). Nas palavras de Marcos, esse milagre é descrito da seguinte forma: alguns dias depois, Jesus entrou novamente em Cafarnaum e souberam que ele estava em casa. Reuniu-se uma tal multidão, que não podiam encontrar lugar nem mesmo a porta. E ele os instruía. Trouxeram-lhe um paralítico carregado por quatro homens. Como não pudessem apresentar-lho por causa da multidão, descobriram o teto por cima do lugar onde Jesus se achava e, por uma abertura, desceram o leito em que jazia o paralítico: Jesus, vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: Filhos, perdoados te são os teus pecados. Ora, estavam ali sentados alguns escribas, que diziam uns aos outros: como pode este homem falar assim? Ele blasfema. Quem pode perdoar os pecados senão Deus? Mas, Jesus penetrando logo com seu espírito nos seus íntimos pensamentos, disse-lhes: Por que pensais isto nos vossos corações? Que é mais fácil dizer ao paralítico: os pecados te são perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Ora, para que conheçais o poder concedido ao filho do homem sobre a terra (disse ao paralítico), eu te ordeno: levanta-te, toma o teu leito e vai para casa. No mesmo instante, ele se levantou e, tomando o leito, foi-se embora à vista de todos. A multidão inteira encheu-se de profunda admiração e puseram-se a louvar a Deus, dizendo: Nunca vimos coisas semelhantes (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Marcos, 2: 1-12). Lucas também é outro evangelista que refere-se a tal milagre: um dia estava ele ensinando. Ao seu redor estavam sentados fariseus e doutores da lei, vindos de todas as localidades da Galiléia, da Judéia e de Jerusalém. E o poder do Senhor fazia-o realizar várias curas. Apareceram algumas pessoas trazendo num leito um homem paralítico; e procuravam introduzi-lo na casa e pô-lo diante dele. Mas não achando por onde introduzir, por causa da multidão, subiram ao telhado e por entre as telhas o arriaram com o leito ao meio da assembléia, diante de Jesus. Vendo a fé que tinham, disse Jesus: Meu amigo, os teus pecados te pag:44 são perdoados. Então os escribas e os fariseus começaram a pensar e a dizer consigo mesmos: Quem é este homem que profere blasfêmias? Quem pode perdoar pecados senão unicamente Deus? Jesus, porém, penetrando nos seus pensamentos, replicou-lhes: Que pensais nos vossos corações? Que é mais fácil dizer: Perdoados te são os pecados; ou dizer: Levanta-te e anda? Ora, para que saibas que o filho do homem tem na terra poder de perdoar pecados (disse ele ao paralítico), eu te ordeno: levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa. No mesmo instante, levantou-se ele à vista deles, tomou o leito e partiu para casa, glorificando a Deus. Todos ficaram transportados de entusiasmo e glorificavam a Deus; e tomados de temor, diziam: Hoje vimos coisas maravilhosas (BÍBLIA SAGRADA, 1995, Lucas, 5: 17-26). No pensamento cristão, nem todas as pessoas com deficiência são percebidas enquanto possuídas por maus espíritos ou como seres condenados em razão de pecados seus ou de ancestrais. Segundo esta teologia, existem aquelas que devem existir para que através das mesmas possa ser despertada no povo o sentimento de bondade e de caridade. Tal afirmação pode ser constatada nas palavras de João, quando este fala a respeito de um diálogo entre Jesus e alguns de seus seguidores a respeito das causas que teriam levado uma pessoa a ser cega desde o nascimento: caminhando, viu Jesus um cego de nascença. Os seus discípulos indagaram dele:Mestre, quem pecou, este homem ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem este pecou nem seus pais, mas é necessário que nele se manifestem as obras de Deus. Enquanto for dia cumpre-me terminar as obras daquele que me enviou. Virá a noite, na qual ninguém mais pode trabalhar. Por isso, enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. Dito isso, cuspiu no chão, fez um pouco de lodo com a saliva e com o lodo ungiu os olhos do cego. Depois lhe disse: vai lava-te na piscina de Siloé [esta palavra significa emissário]. O cego foi, lavou-se e voltou vendo (BÍBLIA SAGRADA, 1995, João, 9: 1-7). Após verificar a forma pelas quais os homens estavam organizados para produzir os seus meios de vida no modo de produção feudal e as idéias predominantes no mesmo a respeito das causas dos problemas físicos, sensoriais e cognitivos, cabe verificar quais teriam sido as condições de existência das pessoas com deficiência ao longo deste período histórico. 3.3 AS CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO FEUDAL: MENDICÂNCIA, SEGREGAÇÃO E ELIMINAÇÃO FÍSICA Foi sobre o predomínio das relações feudais de produção, onde dominou a cultura judaico-cristã, que se encontravam as pessoas com deficiência no período conhecido como Idade Média. Nesta sociedade, segundo alguns historiadores, a grande maioria daqueles que pertenciam a tal segmento podiam perecer logo nos primeiros anos de vida, ser segregados do convívio social, viver de esmolas e, até, eliminados fisicamente. pag:45 Embora o feudalismo, em comparação ao escravismo, tenha representado um avanço no desenvolvimento das forças produtivas, as condições de existência das pessoas, principalmente daquelas pertencentes a classe dos servos, continuaram muito difíceis. Tais dificuldades decorriam fundamentalmente da superexploração a que eram submetidas, da baixa produtividade do trabalho, das constantes guerras entre a nobreza e da falta de recursos para enfrentar as inúmeras doenças e pestes que afligiam o povo. Também pode ser associado a este quadro a quase inexistência de conhecimentos com valor científico, o que favorecia a proliferação de uma interpretação mística da realidade. Essa situação, que condicionava a vida de todos aqueles que viviam naquela sociedade, certamente determinou as condições de existência das pessoas com deficiência. Logo ao nascer, estas pessoas enfrentavam suas primeiras barreiras para continuarem existindo, pois, durante toda a Idade Média e principalmente durante seus séculos mais obscuros, crianças que nasciam com seus membros disformes tinham pouca chance de sobreviver devido às crenças e às histórias fantásticas transmitidas pelas mulheres que praticavam a função de curiosas ou aparadeiras (SILVA, 1986, p. 216). Apesar destas condições desfavoráveis, a eliminação física das pessoas com deficiência não parece ter sido uma prática generalizada no modo de produção feudal. Nesta sociedade, ao contrário do escravismo, mesmo dentre os setores explorados da população, existiam condições objetivas que favoreciam a sobrevivência daqueles que nasciam com algum tipo de deficiência. Estes condicionantes decorriam de três fatores básicos presentes naquela formação social. O primeiro dizia respeito ao fato do servo, em função das relações de vassalagem e servidão, ter a "posse" de um pedaço de terra, onde vivia com a família, produzindo seus meios de vida e a parte que cabia ao seu senhor. O segundo refere-se à possibilidade que o mesmo tinha de, até certo ponto, exercer o controle de sua prole e ser o organizador do seu processo e ritmo de trabalho. O terceiro, decorrente dos anteriores, refere-se à possibilidade de que numa economia familiar, tornava-se possível o aproveitamento da força de trabalho de algumas pessoas com deficiência. Se tais condicionantes foram importantes para ir rompendo com a prática da eliminação das pessoas com deficiência, não foram suficientes para oportunizar a esse segmento social as condições para que pudessem ter acesso, de forma digna, aos seus meios de vida. Diante desta impossibilidade, as mesmas eram tratadas de forma muito diferente das outras consideradas como normais. pag:46 Como já enunciado, um dos procedimentos bastante comum na sociedade feudal em relação às pessoas com deficiência foi a segregação. Com sua consolidação no poder, a Igreja Católica passou a estimular a adoção de hospitais e asilos para recolher, dentre outros, aqueles com deficiência acentuadas. Com isto, "os pobres, os doentes e os deficientes físicos e mentais foram objeto de uma norma da Igreja Católica em pleno século VI, norma essa que pretendia assisti-los e ao mesmo tempo circunscrever seus movimentos a um determinado território" (SILVA, 1986, p. 200). O procedimento de se criar espaços específicos de existência para essas pessoas, que já era praticado de forma isolada por alguns cristãos da antigüidade e, mesmo nos últimos séculos da antiga civilização grega, pode ser observado nas recomendações do Concílio de Tours, realizado nos anos 566 e 567, que decretou pelo seu cânone quinto: "cada cidade alimentará os seus pobres. Os sacerdotes da zona rural e os habitantes também alimentarão seus pobres, a fim de impedir os mendigos vagabundos de correr as cidades e as províncias" (GUÉRIN apud SILVA, 1986, p. 200). Mais do que por uma questão de humanidade, a assistência oferecida às pessoas com deficiência visava, fundamentalmente, evitar o aparecimento de outros embaraços e incômodos para a sociedade. Nos primeiros séculos da Idade Média, estas instituições eram mantidas basicamente pela Igreja Católica. Para elas eram enviados os doentes e os idosos. Estes lugares, "serviram também de abrigo para pessoas impossibilitadas de prover seu próprio sustento devido a sérias limitações físicas e sensoriais" (SILVA, 1986, p. 204). Na medida em que o tempo ia passando e a sociedade feudal desenvolvendo-se, esse procedimento foi sendo ampliado. A partir do século XII, esses hospitais foram pouco a pouco sendo secularizados e, devido às conseqüências cada vez mais sérias da concentração urbana, da falta de cuidados básicos com a saúde e da inexistência de medidas de saneamento básico e outras, um volume muito mais expressivo de doentes levou ao aumento substancial de seu número (SILVA, 1986, p. 210). Com o estabelecimento destes hospitais e asilos, as pessoas com deficiência eram retiradas do convívio social e enclausuradas, passando a viver junto aos moribundos. A partir deste tratamento proposto pela Igreja Católica, o deficiente tem que ser mantido e cuidado. A rejeição se transforma na ambigüidade proteção-segregação ou, em nível teológico, no dilema caridade-castigo. A solução do dilema é curiosa: para uma parte do clero, vale dizer, da organização sócio-cultural, atenua-se o 'castigo' transformando-o em confinamento, isto é, segregação (com desconforto, algemas e pag:47 promiscuidade), de modo tal que segregar é exercer a caridade pois o asilo garante um teto e alimentação. Mas, enquanto o teto protege o cristão as paredes escondem e isolam o incômodo ou inútil. Para outra parte da sócio-cultura medieval cristã o castigo é caridade, pois é meio de salvar a alma do cristão das garras do demônio e livrar a sociedade das condutas indecorosas ou anti-sociais do deficiente (PESSOTTI, 1984, p. 7). Apesar da existência dos hospitais e dos asilos, nem todas as pessoas com deficiência encontravam abrigo nos mesmos. Dentre outras, as razões para este fato pode ter sido a inexistência de instituições que pudessem recolher todos eles, além do que, a presença destes no meio da sociedade podia ter alguma utilidade. Neste último caso, pode-se citar como exemplo os anões e os corcundas, possíveis de serem encontrados vivendo com algumas famílias, devido a razões supersticiosas ou enquanto bobos da corte. As superstições da época medieval levavam a atribuir a essas pessoas poderes especiais para uma espécie de contra-ataque aos efeitos deletérios de feitiços ou de maldições, do mau-olhado e mesmo das pragas e das epidemias. Com o tempo, essas pessoas disformes foram sendo objeto da diversão das grandes moradas e dos castelos dos nobres senhores feudais e seus vassalos, e mesmo das cortes de muitos reis, devido à sua aparência grotesca, aos seus trejeitos e também a uma propalada sabedoria de que não dispunham (SILVA, 1986, p. 216). Outras pessoas com deficiência sobreviviam nesta sociedade perambulando pelas encruzilhadas e cidades em busca de esmolas. Dentre estes estavam aqueles que eram vítimas de mutilações, as quais podiam ser adquiridas no trabalho, nas guerras e por meio de punições recebidas pelos crimes praticados. Dentre as mutilações praticadas podem ser citadas a dos pés, das mãos, do nariz, das orelhas e o vazamento dos olhos. Para exemplificar tais procedimentos, destacar-se-á apenas três acontecimentos onde os olhos de soldados foram vazados. O rei da Inglaterra, Ricardo Coração-de-Leão (1157-1199), quando em guerra com a França pelo controle da Normandia, adotou tal procedimento enquanto forma de vingança. Devido ao extermínio de um grupo de seus melhores homens pelos franceses, Ricardo mandou que trezentos cavaleiros franceses fossem atirados ao rio Sena com suas armaduras para ali morrerem afogados. Ainda não satisfeito, mandou vazar os olhos de 15 outros cavaleiros que foram mandados de volta, ao encontro do rei Felipe Augusto (1165-1223), guiados por um cujo olho direito havia sido poupado (SILVA, 1986, p. 205). Um outro caso de vazamento de olhos de grupo de soldados ocorreu durante uma das incursões dos católicos ao Oriente Médio, por meio das Cruzadas, quando o rei da França, Luís IX (1214-1270), caiu prisioneiro dos Sarracenos. pag:48 Segundo consta, quando Luís IX foi aprisionado pelos sarracenos durante sua primeira Cruzada, trezentos de seus soldados tiveram seus olhos vazados pelos inimigos, por ordem direta do sultão, à base de vinte por dia durante quinze dias, enquanto aguardava os resultados da demorada negociação para pagamento do pesado resgate exigido para libertação do rei da França (SILVA, 1986, p. 218-219). Estes procedimentos podem ser considerados uma pequena imitação do que havia sido feito pelo Imperador Bizantino Basílio II (958-1025). No ano de 1014, quando o seu império estava em guerra contra a Bulgária, desenvolveu uma ação que resultou num golpe cruel e final aos seus oponentes. Sua crueldade infligiu uma vingança fria e estranha a 15.000 cativos que haviam sido culpados apenas de defender seu país. Foram privados de sua visão, mas para um em cada cem, um só olho foi deixado, para que pudesse conduzir a sua centúria cega à presença de seu rei. Dizem que seu rei faleceu de pesar e de horror; a nação toda ficou traumatizada com esse terrível exemplo (GIBBON apud SILVA, 1986, p.187). Desta forma, o procedimento de mutilar aqueles que de alguma forma agiam contra o status quo, foi uma prática comum, não somente na antigüidade, mas também muito presente no feudalismo. Esta afirmação ainda pode ser reforçada por meio de outra informação, a qual revela que vazar os olhos de soldados ou de pessoas culpadas, em geral, foi um costume comum em toda a Europa, por diversos séculos. Era visto, portanto, sem exagerado horror, como o fazemos hoje. Na Inglaterra foi apenas em 1403, durante o reinado de Henrique IV, que o Parlamento inglês aprovou um ato que considerava como crime às penas de cortar a língua ou de vazar os olhos das pessoas (FINLAY apud SILVA, 1986, p. 205). Além da segregação, do abandono e da mendicância, um outro procedimento adotado em relação às pessoas com deficiência, ao longo do modo de produção feudal, foi a eliminação física ocorrida durante o período em que vigorou a "Santa Inquisição", onde a Igreja Católica buscava punir os hereges. Estas punições podiam ser a queima da pessoa viva, a castração e a morte por apedrejamento ou açoite. Os sintomas de alguns tipos de deficiências, tais como, mental leve e visão reduzida, podiam ser provas de que a pessoa que a possuía havia praticado atos de heresia. O fato de na tradição judaico-cristã a causa das deficiências quase sempre estar atribuída a representações do mal e do castigo de Deus, dava respaldo às suas condenações. Entre os textos fundamentais que regiam o processo inquisitorial, cabe salientar o Directorium Inquisitorium, de aproximadamente 1370, escrito por Nicolau Emérico, o grande inquisidor, que tinha como base os documentos papais. Este texto prescrevia os pag:49 comportamentos e até os sinais físicos que davam garantia à acusação. Segundo o mesmo, dentre outros sinais, é também indício de culpa 'responder a algo que não se lhe pergunta ou não responder àquilo sobre o que é interrogado' e ainda 'mudar de discurso'. Adverte ainda Emérico: 'Uma outra manha utilizada pelos hereges é fazerem-se de tolos'. (...) Para que não incorra em injustiça o 'Directorium' prudentemente adverte que os 'nigromantes': podem conhecer-se pelos sinais seguintes: tem a vista torta, por causa das visões, aparições e conversas com os espíritos maus (PESSOTTI, 1984, p. 9). Paradoxalmente, tanto a eliminação e o abandono quanto o acolhimento e a segregação apresentaram-se como práticas morais de acordo com os princípios cristãos da época. Em relação ao acolhimento, faz-se necessário destacar que o mesmo se deu de forma bastante limitada, pois a própria Igreja Católica impedia que tais pessoas pudessem ingressar na carreira sacerdotal. Esta proibição pode ser percebida nas palavras do papa Gelásio I, o qual afirmou por volta do ano 495 que "Não seja admitido ao sacerdócio quem não conheça às letras ou tenha algum defeito físico" (MANACORDA, 1997, p. 112). Esta proibição parece ser perfeitamente coerente com o pensamento cristão a respeito das causas das deficiências, pois, em conformidade com a teologia judaico-cristã, não há como justificar a presença de alguém, possuído pelos maus espíritos ou condenado por pecados, enquanto pregador dos "ensinamentos divinos". Segundo Silva (1986), a associação das deficiências mais marcantes a razões religiosas ou sobrenaturais ficaram registrados em alguns quadros pintados no decorrer deste período da história da humanidade. Em conformidade com esse pesquisador, neles, tanto os espíritos malignos da hierarquia imaginária de Satã quanto os seres lendários e de comportamento malévolo e desumano são invariavelmente representados por seres com os rostos monstruosos, os pés deformados, as cabeças enormes ou muito pequenas, as orelhas desproporcionais, o nariz aquilino muito comprido, corcundas, membros retorcidos... (p. 217-218). Esta prática de se associar o mal a seres humanos com algum tipo de deformidade, ainda continua muito presente no imaginário social do homem contemporâneo. Na atualidade, dentre outros procedimentos, contribui para a estigmatização das pessoas com deficiência, aqueles que são adotados em muitos desenhos animados, filmes de terror, novelas e peças teatrais. Nos mesmos, onde quase sempre trabalha-se uma visão maniqueísta de mundo, o mal e representado por figuras que estão fora da normalidade, isto é, alguém que possua alguma deformidade corporal, a qual se apresenta ao público enquanto o emblema da imperfeição espiritual. pag:50 Diante do que foi pesquisado em relação às condições de existência das pessoas com deficiência no feudalismo, é possível afirmar que para as mesmas só existiam duas formas de sobrevivência: uma delas era através da mendicância, a qual deveria ser feita todos os dias, através de súplicas e humilhações. Estas, quando atendidas pelos cristãos, certamente tinham como principal finalidade purificar a própria alma e acalmar os "maus espíritos" que estavam presente naqueles seres; a outra era viver nos hospitais e asilos, os quais deveriam ser, fundamentalmente, um depósito daqueles que eram considerados improdutivos e nocivos para a sociedade. Desta forma, caridade, superstição e castigo, compõem grande parte do praticado e pensado em relação a esse segmento social, ao longo do período medieval. Em conformidade com o que foi exposto a respeito das condições de existência das pessoas com deficiência no modo de produção feudal, apesar de todas as dificuldades que as mesmas enfrentavam, parece ser possível afirmar que houve um certo avanço em relação aquelas encontradas no escravismo. Este avanço deu-se principalmente, no que se refere a eliminação física daqueles que pertenciam a tal segmento social. Com exceção dos já mencionados procedimentos adotados pela "Santa Inquisição", não parece ter havido no feudalismo, legislações e nem costumes generalizados de assassinar as pessoas com deficiência, como foi encontrado nos períodos anteriores, em especial no modo de produção escravista. As explicações dadas por muitos pesquisadores para a ocorrência de tal mudança de paradigma, quase sempre reduzem-se à influência da cultura religiosa judaico-cristã. Porém uma religião é uma superestrutura e não pode ser a principal determinante do modo de agir dos homens. Desta forma os mesmos deveriam buscar na própria realidade feudal as razões para tal fato, ou seja, nas novas relações de produção que sucederam o escravismo, nas quais o servo, ao contrário do escravo clássico da antiga Grécia e de Roma, possuía um pedaço de terra, onde vivia com sua família e organizava minimamente o seu trabalho e, com isto, dispunha de algumas condições para responder a determinadas necessidades específicas daqueles que possuíssem uma deficiência. Estas condições referem-se às possibilidades da pessoa com deficiência desenvolver alguma atividade dentro da organização produtiva familiar. No entanto, aqueles que possuíam uma deficiência muito acentuada, certamente não podiam apresentar um rendimento satisfatório no desenvolvimento de suas atividades produtivas e acabavam representando uma "cruz" a ser carregada pela sua família, a qual sobrevivia com grandes dificuldades devido ao processo de exploração que estava submetida pela nobreza feudal. Diante desta situação, as pag:51 saídas que restaram para a sobrevivência deste segmento social foram a mendicância e o internamento em asilos, hospícios e leprosários. Tais condições de existência das pessoas com deficiência, determinadas por razões objetivas numa sociedade classista, só poderiam ser justificadas a partir das idéias hegemônicas presentes na mesma, ou seja, a ideologia da classe dominante, a nobreza armada de espadas ou cruzes: guerreiros e sacerdotes. O pensamento judaico-cristão, que justificava as relações feudais de produção e atribuíam à vontade divina as causas da deficiência, também encontrou nessa tradição teológica as bases para respaldar não só a mendicância e o internamento, como também a própria eliminação física das pessoas com deficiência. pag:52 CAPÍTULO IV AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA: A EXCLUSÃO DOS QUE NÃO ESTÃO AJUSTADOS A LÓGICA DO PROCESSO PRODUTIVO BURGUÊS As relações servis de produção que caracterizaram grande parte da Idade Média européia, que estava fundamentada numa compreensão teológica de mundo, influenciara o pensamento do homem europeu daquele período histórico, deixando marcas profundas no imaginário social que perdura até os tempos atuais, começou a desaparecer com o estabelecimento das relações de trabalho assalariado enquanto relação de exploração e levou a constituição do modo de produção capitalista. Tal transformação, que foi o resultado de um longo processo de desenvolvimento das forças produtivas e, fundamentalmente, das contradições sociais existentes no seio do próprio feudalismo, tem no século XVI o ponto divisor entre a sociedade dos castelos e a da vida urbana e marcou o início de um período cultural conhecido como Renascença. Com o desenvolvimento das relações capitalistas de produção, ocorreram profundas transformações em todas as demais atividades humanas, dentre elas, as políticas, científicas e religiosas. Estes fatos obrigaram a revisão de muitos paradigmas, dentre os quais, o que se referia às causas da existência das pessoas com deficiência, bem como, algumas atitudes sobre como se relacionar com as mesmas. Com a finalidade de obter uma melhor compreensão a respeito das bases objetivas da exclusão social das pessoas com deficiência no modo de produção capitalista, neste capítulo buscar-se-á abordar o período de transição da sociedade feudal para a burguesa, evidenciando os mais relevantes fatos que contribuíram para tal acontecimento. Em seguida, serão destacadas as principais características que alicerçam as relações de produção capitalista e como as mesmas condicionam a existência do segmento social em estudo. pag:53 4.1 A TRANSIÇÃO DO FEUDALISMO PARA O CAPITALISMO: DA PRODUÇÃO DE SUBSISTÊNCIA À ECONOMIA DE MERCADO E A EXTRAÇÃO DA MAIS-VALIA Na sociedade feudal, devido a quase total auto-suficiência dos feudos, praticamente não havia circulação de mercadorias e as riquezas excedentes eram acumuladas nas mãos dos detentores do poder. A ausência de um mercado de consumo impedia o desenvolvimento da indústria e do comercio. Nos feudos era produzido praticamente tudo aquilo que seus moradores necessitavam para viver. A sua auto-suficiência se fazia necessária devido ás dificuldades de circulação das pessoas e, por conseqüência, dos bens de consumo. Por ser uma sociedade marcada pela descentralização do poder, que estava concentrado nas mãos dos senhores feudais, não havia uma moeda, uma unidade de peso e de medida que fosse comum a um grande número de feudos. Uma outra dificuldade era a realização do transporte de mercadorias, pois as estradas eram de péssima qualidade e freqüentadas por duas espécie de salteadores, "bandidos comuns e senhores feudais que faziam parar os mercadores e exigiam que pagassem direitos para trafegar em suas estradas abomináveis" (HUBERMAN, 1981, p. 26). Todos estes fatores, dentre outros, acabaram, durante muito tempo impedindo o desenvolvimento da indústria e do comércio neste período da história. Este quadro começou a ser modificado com a organização das Cruzadas, expedições armadas contra os muçulmanos do Oriente, que ficaram conhecidas como guerras santas. Segundo Huberman (1981, p. 28), o desenvolvimento das mesmas satisfaziam, basicamente, os interesses da Igreja de Roma, que pretendia ampliar os seus domínios; da igreja de Constantinopla, que buscava enfraquecer os muçulmanos que ameaçavam o seu poder; da nobreza, que almejava mais terras para seus herdeiros; e dos comerciantes, que viam nas Cruzadas um meio de ampliar seus negócios. Através das Cruzadas o comércio se expandiu, a Europa ocidental retomou o contato com o Oriente e, por conseqüência, com seus produtos (especiarias), os quais passaram a ser consumidos principalmente pela nobreza. Tal fato levou ao crescimento do comércio e a organização de grandes feiras controladas pelos próprios comerciantes e, na medida em que seus empreendimentos desenvolveram, entraram em contradição com a velha ordem feudal e se constituíram enquanto classe revolucionária. Na medida em que se desenvolviam as contradições existentes no seio da sociedade feudal, foi ocorrendo o surgimento de novos centros urbanos e o crescimento dos já existentes, os quais foram sendo colocados a serviço de uma nova ordem econômica. Nestas cidades (burgos) existiam as corporações de ofícios, as quais eram associações que pag:54 organizavam a produção e a distribuição de determinados produtos, reunindo profissionais do mesmo ramo, como por exemplo os sapateiros, ferreiros e alfaiates. Nas corporações existia uma escala hierárquica, composta de mestre, oficial e aprendiz. "Oficiais e aprendizes estavam organizados em cada ofício conforme melhor correspondesse aos interesses dos mestres" (MARX e ENGELS, 1984, p. 80) Devido à instabilidade nas relações entre o ocidente e os turcos otomanos, colocou-se aos comerciantes a necessidade de estabelecer novos caminhos com os centros produtores de especiarias do Oriente. Para atingir este objetivo foram desenvolvidas e utilizadas novas tecnologias de navegação, com as quais os europeus ocidentais, no final do século XV e no decorrer dos dois séculos seguintes, já haviam entrado em contato com praticamente todos os povos do planeta e colocado-os a serviço de seus interesses. Foi um período de grandes descobertas geográficas e que levou a um enorme desenvolvimento do comércio, que por sua vez contribuiu para a ocorrência de profundas transformações na história da humanidade. As descobertas iniciaram um período de expansão sem par, em toda a vida econômica da Europa ocidental. A expansão dos mercados constituiu sempre um dos incentivos mais fortes à atividade econômica. A expansão dos mercados, nessa época, foi maior do que nunca. Novas regiões com que comerciar, novos mercados para os produtos de todos os países, novas mercadorias a trazer de volta, tudo apresentava um caráter de contaminação e estímulo e anunciou um período de intensa atividade comercial, de descobertas posteriores, exploração e expansão (HUBERMAN, 1981, p. 99). Com o desenvolvimento do comércio, as corporações de ofício, que eram instituições típicas da Idade Média, tornaram-se incapazes de satisfazer as necessidades do mercado e, aos poucos, foram sendo superadas por uma nova forma de organização da produção, que ficou conhecida como manufaturas. Com tal transformação, tratou-se de reunir num só local ou em locais diferentes um grande número de trabalhadores e organizar a sua produção no sentido de atender aos interesses de uma nova classe exploradora. Para não permitir que uma determinada manufatura ficasse a mercê de leis impostas pelas corporações de ofício, a mesma era "instalada nos portos marítimos de exportação, ou sobre os pontos (...) situados fora do controle do velho sistema urbano e da organização corporativa" (MARX, 1982, p. 183). Nas manufaturas, buscava-se organizar o trabalho com a finalidade de concluir num tempo determinado uma considerável quantidade de mercadorias encomendadas. Para tanto, reparte-se o trabalho entre diversos trabalhadores e pag:55 as diferentes operações não são mais efetuadas sucessivamente pelo mesmo operário, são determinadas em separado a tal ou tal operário e executadas simultaneamente. Essa repartição acidental se repete, mostra suas vantagens particulares e se cristaliza pouco a pouco sob a forma de divisão sistemática de trabalho. A mercadoria não é mais o produto individual de um operário independente que completa as diversas tarefas, torna-se o produto social de uma reunião de operários onde cada qual faz continuamente uma única e mesma operação parcial (MARX, 1982, p. 65-66). A ampliação do comércio que se deu após as grandes descobertas geográficas continuou em rítmico acelerado e, pouco mais de dois séculos após, as manufaturas já não podiam dar conta de produzir as mercadorias impostas pela demanda. Tal fato colocou a necessidade de buscar novos meios para se produzir. Para tanto, houve um maior investimento nas ciências, o que resultou em novas tecnologias, as quais provocaram um acontecimento que ficou conhecido na história como Revolução Industrial. A Revolução Industrial marcou a introdução da máquina a vapor na produção e a mecanização do processo produtivo, o que transformou o trabalhador numa extensão da máquina, a qual passou a ditar o ritmo do trabalho. Com a introdução da máquina movida a vapor, foi possível a adoção do sistema fabril em grande escala, oportunizando a intensificação da divisão do trabalho, o que representou um enorme aumento da produção. Todos estes acontecimentos ocorridos no campo da produção, resultado do desenvolvimento das contradições de classe já existentes no seio da sociedade feudal, provocaram mudanças em todas as demais atividades humanas. Com a sociedade industrial, o poder econômico e político, que estava nas mãos da nobreza e da Igreja católica durante o feudalismo, passa a ser controlado pelos capitalistas; a Igreja Católica que outrora possuía grande poder é enfraquecida e cria condições para uma nova visão de mundo, na qual o homem virtuoso é aquele que consegue prosperar economicamente ao longo de sua vida; a ciência e a tecnologia, que estiveram praticamente adormecidas na Idade Média, são incentivadas e colocadas a serviço da produção; surge o liberalismo, enquanto expressão ideológica da burguesia, assentado nos princípios do individualismo, da liberdade, da propriedade, da igualdade e da democracia e, no lugar da contradição entre nobreza e servo, se estabelece uma outra, entre burguesia e proletariado. Para promover tamanha transformação os novos detentores do poder necessitaram de grande quantidade de capitais e de força de trabalho suficiente e disposta a colocar em marcha o novo processo produtivo. Neste sentido, foram essenciais os saques e conquistas coloniais, possibilitados pelas novas descobertas geográficas e pela transformação das terras feudais em empreendimentos capitalistas, o que resultou no deslocamento de um grande contingente de camponeses para as cidades. pag:56 Como já foi mencionado anteriormente, a intensificação do comércio deu grande impulso na superação do feudalismo e o surgimento de novas relações de produção. Ainda durante a Idade Média, grandes quantidades de riqueza foram deslocadas do Oriente para a Europa ocidental por meio do comércio, desenvolvido, principalmente, por algumas cidades da península itálica, dentre estas Veneza e Gênova. Mas por maior que fosse esse tesouro do Oriente, não era bastante. Um afluxo novo e maior de capital era necessário antes que a idade da produção capitalista realmente pudesse começar a existir. Foi a partir do século XVI que se começou a reunir capital em volume bastante grande para satisfazer a essa necessidade (HUBERMAN, 1981, p.169). O capital acumulado, que do ponto de vista econômico, serviu de base para o estabelecimento do novo modo de produção, que sucedeu o feudalismo, foi constituído principalmente através do comércio. Este termo deve ser compreendido de forma elástica, significando não apenas a troca de mercadorias, mas incluindo também a conquista, pirataria, saque, exploração. Tal afirmação está fundamentada nas seguintes palavras de Marx (1982): a descoberta das minas de ouro e de prata da América, o extermínio das populações indígenas, sua escravização ou seu enterramento nas minas, a conquista e o começo da pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África num vasto cercado onde se caçavam negros, tudo isso caracteriza a aurora da era da produção capitalista. Esses procedimentos idílicos são os fatores importantes da acumulação primitiva (p. 183). A exploração das colônias produziu uma grande quantidade de riquezas para as metrópoles e fez as primeiras fortunas dos comerciantes europeus. Como já demonstrado, dentre as atividades destes senhores de negócios encontrava-se o comércio de seres humanos, ou seja, os de negros nativos da África, que eram feitos escravos e comercializados. Tal atividade deu uma grande contribuição para o processo de desenvolvimento industrial. Esta afirmação pode ser demonstrada com as próprias palavras de um europeu do século XIX, em 1840, o Professor H. Merivale ao proferir palestras numa série de conferências em Oxford sobre "Colonização e Colônias", formulou duas perguntas muito importantes e deu-lhes uma resposta com o mesmo grau de valor: o que transformou Liverpool e Manchester de cidades provincianas em cidades gigantescas? O que mantém hoje sua indústria sempre ativa, e sua rápida acumulação de riqueza ? (...) Sua presente opulência se deve ao trabalho e sofrimento do negro, como se suas mãos tivessem construído as docas e fabricado as máquinas a vapor (HUBERMAN, 1981, p. 171). pag:57 Além da grande quantidade de riqueza extraída das atividades comerciais, era necessário algo mais do que o capital acumulado para colocar em marcha um novo modo de produção. Nas novas relações de produção era indispensável a existência de trabalhadores livres e dispostos a trabalharem para os donos dos novos meios de produção. Esta força de trabalho adveio basicamente de dois acontecimentos: a expulsão dos camponeses de suas terras e a ruína das corporações de ofícios. A intensificação do comércio e a necessidade de grande quantidade de produtos manufaturados, provocou mudanças na organização da economia rural. Tais modificações consistiram na colocação das terras agricultáveis a serviço dos interesses do capital. Para a nobreza tal acontecimento representou uma oportunidade para a escassez de recursos que a mesma enfrentava. Um exemplo da transformação dos antigos feudos em empreendimento capitalista, foi o ocorrido na Inglaterra, onde o aumento do preço da lã levou a nobreza a cercar as terras para favorecer a criação de ovelhas. Os senhores feudais (...) criaram um proletariado bem mais numeroso ao expulsar pela força bruta os camponeses das terras que estes possuíam com os mesmos títulos feudais que eles, ao se apropriarem dos bens comunais (...). As grandes guerras feudais tinham devorado a velha nobreza feudal; a nova, filha de seu tempo, via no dinheiro o poder dos poderes. Sua divisa foi então: transformação das terras cultivadas em pastagens (MARX, 1982, p. 174). Os artesãos, assim como os camponeses, também foram separados de seus meios de produção para serem convertidos em operários. Isso foi uma conseqüência lógica do desenvolvimento dos empreendimentos capitalista. Com o desenvolvimento da produção das manufaturas e mais tarde da grande indústria, o produto artesanal, devido a seu alto custo de produção, não pode mais concorrer com aqueles manufaturados ou industrializados. Desta forma não restava aos artesãos outra alternativa de sobrevivência a não ser a de vender seus equipamentos e sair a procura de algum capitalista que quisesse comprar a sua força de trabalho. A demonstração da forma pelas quais os camponeses e artesãos foram transformados em trabalhadores assalariados revela que somente quando os homens não são donos da terra e das ferramentas, quando foram separados violentamente desses meios de produção, é que procuram trabalhar para outra pessoa. Os homens só se deixam explorar por outro, quando a necessidade de obtenção de seus meios de vida lhes obrigam. O desenvolvimento do capitalismo levou-o à fase imperialista, onde algumas grandes potências econômicas subjugam a maioria dos povos do planeta e os colocam a serviço de seus interesses. Em muitas regiões, as relações capitalistas de produção foram implantadas pag:58 através de medidas coercivas. Uma destas medidas foi a criação de impostos para os povos nativos, os quais só poderiam ser pagos se os mesmos abandonassem uma agricultura de subsistência e fossem trabalhar nos empreendimentos burgueses (minas, plantações etc). Se os trabalhadores rejeitassem sobreviver sobre as relações de trabalho assalariado, os detentores do poder recorriam a toda forma de coerção. Como exemplo pode ser destacado o ocorrido no século XX numa aldeia africana, onde um observador das condições nas colônias francesas da África Ocidental, em 1935, conta qual foi o remédio aplicado àqueles que não pagavam os impostos por não estarem a serviço do processo de produção capitalista: uma aldeia do sul do Sudão não pode pagar os impostos; mandaram para lá guardas nativos, que levaram todas as mulheres e crianças da aldeia, colocaram-nas num campo, no centro, queimaram as palhoças, e disseram aos homens que só teriam suas famílias de volta quando pagassem os impostos (HUBERMAN, 1981, p. 265). A história da criação de uma oferta de força de trabalho necessária à produção capitalista deve, portanto, ser entendida enquanto a história de como os trabalhadores foram privados de seus meios de produção, ou seja: o operário não podia ter a livre disposição de sua pessoa senão depois de que deixou de estar preso à gleba como servo de outro. Para se tornar livre vendedor de força de trabalho e levar sua mercadoria onde quer que houvesse mercado para ela, precisava também se livrar da dominação das corporações, dos regulamentos sobre aprendizes e oficiais, de todas as prescrições que embaraçavam o trabalho. O movimento histórico que transforma os produtores em assalariados aparece, pois, de um lado, como sua libertação da servidão e da coação corporativa; é este o aspecto que os historiadores burgueses vêem. Nelas, de outra parte, esses recém-emancipados só se tornam vendedores de si mesmos após terem sido despojados de todos os seus meios de produção e de todas as garantias de existência que lhes ofereciam as velhas instituições feudais. Essa história de sua expropriação se acha inscrita com letras de sangue e de fogo nos anais da humanidade (MARX, 1982, p. 172). Um outro aspecto do desenvolvimento capitalista tem sido a super exploração da força de trabalho. Mesmo na Europa e nos Estados Unidos, até poucas décadas atrás, homens, mulheres e crianças eram submetidos a uma jornada de trabalho que podia chegar a 14, 16 e até 18 horas por dia. A mecanização da produção, se reduziu a necessidade de força física para se produzir e criou condições para o aproveitamento da capacidade produtiva de mulheres e crianças. Um exemplo da exploração infantil nas fábricas pode ser verificado num relatório de uma comissão inglesa, que no ano de 1883 mostra um depoimento de Thomas Clarke, um pag:59 menino de 11 anos de idade, ganhando 4 xelins por semana (com a ajuda do irmão) como emendador de fios. No documento a criança relata que: sempre nos batiam se adormecíamos .... O capataz costumava pegar uma corda da grossura de meu polegar, dobrá-la, e dar-lhe nós. Eu costumava ir para a fábrica um pouco antes das 6, por vezes às 5, e trabalhar até 9 da noite. Trabalhei toda a noite, certa vez nós mesmos escolhíamos isso. Queríamos ter algum dinheiro para gastar. Havíamos trabalhado desde as 6 da manhã do dia anterior. Continuamos trabalhando até as 9 da noite seguinte. Estou agora na seção de cordas. Posso ganhar cerca de 4 xelins .... Meu irmão faz o turno comigo. Ele tem 7 anos. Nada lhe dou, mas, se não fosse meu irmão, teria de dar-lhe 1 xelim por semana .... Levo-o comigo, às 6, e fica comigo até às 8 (HUBERMAN, 1981, p. 191-192). Um outro exemplo, mais recente, a respeito da exploração do trabalho infantil, vem dos Estados Unidos da América, através de um relatório apresentado em agosto de 1934. Este relatório refere-se ao trabalho de criança desenvolvido no sistema doméstico, o qual é uma herança do período manufatureiro. O mesmo refere-se a um levantamento do trabalho doméstico realizado para a indústria de metal pré-fabricado. Os produtos incluem ganchos, colchetes, alfinetes de segurança, alfinetes de cabeça e botões de metal. A colocação de cordões ou arames às etiquetas é outra operação realizada por alguns dos trabalhadores domésticos pesquisados (...). Crianças de menos de 16 anos trabalhavam em 96 das 129 famílias estudadas. Metade delas tinha menos de 12 anos. Trinta e quatro tinham 8 anos e menos, e doze tinham menos de cinco anos (HUBERMAN, 1981, p. 126-127). As ações perpetradas pelos capitalistas, tais como: os saques das colônias, as atrocidades cometidas contra povos mais fracos, o comércio de escravos, as extensas jornadas de trabalho e a exploração de crianças, levou Marx (1982) a formular o seguinte comentário sobre o nascimento do capitalismo: "se o dinheiro, segundo Augier, 'vem ao mundo com sua mancha natural de sangue sobre a face', o capital nasce gotejando sangue e lama dos pés à cabeça" (p. 189). Portanto, desta forma forjou-se, a partir do desenvolvimento das contradições estabelecidas no seio do próprio feudalismo, o modo de produção capitalista, o qual está constituído por duas classes fundamentais e com interesses antagônicos. De um lado encontra-se a burguesia detentora do poder econômico e, por conseqüência, político e ideológico. A classe burguesa compõe-se dos grandes proprietários não trabalhadores que possuem os meios de produção na indústria e na agricultura. São eles que organizam o trabalho nas empresas que lhes pertencem e, sob a forma de lucro, apropriam o produto suplementar criado pelo trabalho não pago dos operários assalariados (HERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986, p. 49). pag:60 De outro lado, encontram-se os trabalhadores, que na sociedade primitiva já haviam sido comunitários, escravos na antigüidade e servos de gleba na Idade Média, que, com o capitalismo, passaram a condição de proletários, ou seja, de operários assalariados privados dos meios de produção e dos meios de subsistência. Para viver, os operários são obrigados a trabalhar como assalariados para os capitalistas, vendendo-lhes a sua capacidade de trabalhar, ou a sua força de trabalho (HERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986, p. 49). A ação do capitalista no processo produtivo, tem por finalidade a extração da mais-valia, que é de onde o mesmo obtém o seu lucro. Para tanto, seus empreendimentos estão assentados na compra e venda de mercadorias, as quais possui um valor de troca, que é determinado pela quantidade da 'substância criadora de valor' que aí se acha contida - o trabalho. A própria quantidade de trabalho é medida pela sua duração, e o tempo de trabalho é medido por seu turno, segundo certos intervalos de duração fixa, tais como hora, jornada, etc (MARX, 1982, p. 26). A força de trabalho do operário é também ela uma mercadoria que precisa ser diariamente vendida pelo seu possuidor. Como mercadoria, o valor desta força de trabalho mede-se da mesma forma como se mede o valor de qualquer mercadoria "pelo tempo de trabalho necessário à sua produção e, consequentemente, também para sua reprodução" (MARX, 1982, p. 31). Apesar da determinação do valor da força de trabalho ser o mesmo das demais mercadorias, ela possui um elemento fundamental que a distingue radicalmente de todas as demais: trata-se da sua capacidade de, ao longo do processo produtivo, gerar um valor maior do que ela mesma vale. Esta quantidade de riqueza adicional que excede ao valor da força de trabalho é a mais-valia, a qual pode ser assim melhor definida: a mais-valia é produzida pelo emprego da força de trabalho. O capital compra a força de trabalho e paga em troca o salário. Trabalhando, o operário produz um novo valor, que não lhe pertence, e sim ao capitalista. É preciso que ele trabalhe um certo tempo para restituir unicamente o valor do salário. Mas isso feito, ele não pára, mas trabalha ainda mais algumas horas por dia. O novo valor que ele produz agora, e que ultrapassa então ao montante do salário, se chama mais-valia (MARX, 1982, p. 53). Já tendo visto que o capitalismo surgiu a partir do desenvolvimento das contradições existentes no seio do feudalismo e de que foi se fortalecendo ao ponto de se consolidar como um novo modo de produção, caracterizando um novo período histórico, decorrente das pag:61 relações sociais estabelecidas como resultado do processo de trabalho implantado pela burguesia, cabe agora verificar a forma como a sociedade burguesa vem compreendendo e se relacionando com as pessoas com deficiência. Para tentar atingir este objetivo, esta pesquisa estará centrada na análise da teologia cristã, da ciência médica positivista, da educação formal e da lógica da organização da produção capitalista, evidenciando suas possíveis contribuições para a forma de se proceder junto a este segmento da sociedade. 4.2 A TEOLOGIA CRISTÃ: VELHOS E NOVOS ARGUMENTOS PARA EXCLUIR AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Na Europa, por volta da metade do segundo milênio da era cristã, enquanto resultado das transformações que estavam ocorrendo na base material, também se processava um conjunto de acontecimentos que iriam favorecer o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Dentre estes, encontra-se a expansão do espírito e dos conteúdos do humanismo em toda Europa (...); a assunção das aristocráticas exigentes humanísticas e a mediação entre estas e as exigências ascético-populares numa perspectiva de reformas religiosa e social que envolvam na cultura as classes subalternas; a reação contra todas estas tentativas de inovação, que abalam os fundamentos morais e políticos das velhas sociedades, isto é, o catolicismo e as cúpulas do papado e do império; a necessidade, na rejeição do mundo medieval no encontro com a civilização de outros continentes, de projetar uma sociedade totalmente nova e ainda inexistente; o rompimento definitivo dos velhos equilíbrios políticos determinados pelo advento ao poder, nos Países Baixos e na Inglaterra, da grande burguesia moderna, com as mudanças culturais que isso implica (MANACORDA, 1997, p. 193). Foi neste contexto que algumas pessoas melhor ajustadas à realidade de seu tempo, começaram a questionar a forma pela qual os homens eram obrigados a agir e pensar. Dentre estes questionamentos encontravam-se alguns dogmas da igreja católica, que condenava o acumulo de riqueza e era um empecilho para o desenvolvimento do novo modo de produção. Este movimento, que ficou conhecido como Reforma, atendia, fundamentalmente, as necessidades dos industriais, dos banqueiros e dos comerciantes, já que introduziram novos preceitos religiosos distinto daqueles predominantes na sociedade feudal, que era dominada pelos guerreiros e sacerdotes e onde o homem era ensinado a viver despreocupado das questões mundanas e a se dedicar nas atividades que pudessem ajudá-lo na salvação de sua alma. A reforma "(...) dividiu-se em muitas seitas diferentes, mas em todas, e em graus variados, o capitalista interessado nos bens materiais podia encontrar consolo" (HUBERMAN, 1981, p. 179). pag:62 Para exemplificar estas mudanças, podem ser lembrados os ensinamentos dos Puritanos que, ao contrário dos católicos que condenavam na teoria o acumulo de riqueza, afirmavam que o homem rico era um bem aventurado. Se Deus vos mostra o caminho pelo qual podeis ganhar mais, legalmente, do que em qualquer outro (sem dano para a nossa alma ou para qualquer outra) e se recusais, escolhendo o caminho menos lucrativo, estareis faltando a uma de vossas missões, e rejeitando a orientação divina, deixando de aceitar Seus dons para usá-los quando Ele o desejar; podeis trabalhar para serdes ricos para Deus, embora não para a carne e o pecado (HUBERMAN, 1981, p. 179-180). Esta concepção também pode ser encontrada nas pregações dos metodistas, os quais afirmam por meio das palavras de um de seus principais expoentes que "não devemos impedir as pessoas de serem diligentes e frugais; devemos estimular todos os cristãos a ganhar tudo o que puderem, e a economizar tudo o que puderem; ou seja, na realidade, a enriquecer" (WESLEY apud HUBERMAN, 1981, p. 180). Ainda para demonstrar que a teologia cristã proposta pelos reformadores estava em conformidade com a nascente nova ordem social, pode-se destacar os calvinistas. Seu fundador, procurando dissociar o lucro do capitalista e o pecado formulou a seguinte questão: "por que razão a renda com os negócios não deve ser maior do que a renda com a propriedade da terra? De onde vêm os lucros do comerciante, senão de sua diligência e indústria?" (CALVINO apud HUBERMAN, 1981, p. 180). As mudanças propostas pelos reformistas não ocorreram em todas as direções, mas pelo contrário, em alguns casos, os mesmos propuseram a adoção de velhos procedimentos que não entravam em contradição com o novo período histórico. Dentre estes, encontra-se a sua forma de ver, compreender e tratar as pessoas com deficiência. Esta afirmação pode ser demonstrada por meio de um relato do próprio Martinho Lutero (1483-1546), um dos principais reformadores e que era "(...) intérprete (...) da burguesia moderada e da pequena nobreza [e que] só pretendia acabar com o poderio do clero e instituir uma Igreja pouco dispendiosa" (PONCE, 1992, p. 119). O pensamento deste reformador a respeito das causas das deficiências e a sua opinião sobre o modo de se proceder em relação as pessoas que as possuíam, revela o seu profundo desprezo por aqueles que pertencem a este segmento social. Tal afirmação pode ser evidenciada através de suas próprias palavras, ao se referir a inconveniência da existência de uma pessoa com deficiência mental: pag:63 Há oito anos vivia em Dessau um ser que eu, Martinho Lutero, vi e contra o qual lutei. Há doze anos, possuía vista e todos os outros sentidos, de forma que se podia tomar por uma criança normal. Mas ele não fazia outra coisa senão comer, tanto como quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babava-se, e quando se lhe tocava, gritava. Quando as coisas não corriam como queria, chorava. Então, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse o príncipe, levaria essa criança ao Moldau que corre perto de Dessau e a afogaria. Mas o príncipe de Anhalt e o príncipe de Saxe, que se achava presente, recusaram seguir o meu conselho. Então eu disse: pois bem, os cristãos farão orações divinas na igreja, a fim de que Nosso Senhor expulse o demônio. Isso se fez diariamente em Dessau, e o ser sobrenatural morreu nesse mesmo ano ... (LUTERO apud PESSOTTI, 1984, p. 13) Ao analisar-se estas palavras, parece que o pensamento e a prática de Lutero em relação as pessoas com deficiência está composto por elementos de períodos históricos distintos. Isto ocorre, porque ao falar da inutilidade da criança e a comparar seu gasto com os de "quatro camponeses na ceifa", explicita uma visão economicista da existência do ser humano, fato este que é levado às ultimas conseqüências pelo modo de produção capitalista; na medida em que o mesmo define a causa da deficiência com base nos tradicionais dogmas do cristianismo, os quais haviam vigorados plenamente durante o período feudal; e ao propor a morte enquanto a solução do "problema", regrediu até ao escravismo. Mesmo após o advento da Reforma, a Igreja Católica ainda permaneceu muito forte e influenciando o pensamento ocidental, principalmente nos países de língua oriundas do latim. No que se refere as pessoas com deficiência, o catolicismo da sociedade capitalista pouco ou nada se diferenciou das idéias medievais. Continuaram os bloqueios interpostos pela Igreja Católica para as pessoas com deficiências tornarem-se sacerdotes. Alguns exemplos do século XVIII são relatados por Thomassin, o qual destaca, dentre outros acontecimentos: no dia 20 de janeiro de 1789 a Sagrada Congregação recusou concordar com a ascensão às santas ordens de um clérigo 'manco' da Diocese de Albenga, na Ligúria; o padre François Pujol, da Diocese de Vincennes, na França, tendo sofrido um acidente vascular cerebral, perdeu o uso do braço e da mão esquerdos; solicitou ao bispo a dispensa da irregularidade para exercício das funções sacerdotais e para celebrar a missa numa capela privada. Embora seu bispo tenha apoiado sua consulta, a Sagrada Congregação recusou o pedido no dia 19 de agosto de 1797; O seminarista Ambroise Lamberti, da Diocese de Albenga, tinha um problema de movimentação da perna esquerda, de tal forma que precisava andar com o apoio continuo de uma bengala. O bispo da Diocese foi consultado a respeito e opinou que haveria graves inconvenientes em promovê-lo às sagradas ordens, no que foi apoiado pela Sagrada Congregação no dia 20 de janeiro de 1798 (THOMASSIN apud SILVA, 1986, p. 259). Como se pode perceber, a Igreja Católica, não só rejeita o ingresso das pessoas com deficiência ao sacerdócio, como também, impede o exercício desta atividade por parte daqueles que, mesmo já fazendo parte do clero, vierem adquirir tal anormalidade. Ainda existem mais relatos do século XVIII, dando conta deste tipo de procedimento, onde a decisão pag:64 de se excluir um sacerdote com uma deficiência física, foi tomada pela maior autoridade da igreja católica, o papa. O sacerdote Philippe Maggiorani, da Diocese de Borgo San-Sepolcro, na Toscana, teve sua mão esquerda de tal forma mutilada pela acidental explosão de espingarda excessivamente carregada, durante uma caçada, que foi necessário amputar parte do braço para evitar sua morte. Solicitou dispensa da irregularidade para prosseguimento de seus trabalhos como sacerdote e esta lhe foi negada em 18 de junho de 1785. No ano de 1787 apresentou uma nova e humilde solicitação, acompanhada do parecer favorável de seu bispo e do total apoio de seus paroquianos. No entanto, a Sagrada Congregação, depois de haver submetido o assunto à consideração pessoal do papa, manteve a recusa à dispensa de irregularidade por um decreto de 7 de julho de 1787 (THOMASSIN apud SILVA, 1986, p. 259). Na Igreja Católica, as restrições a prática do sacerdócio, por parte de pessoas com deficiência, está explicitada no Código de Direito Canônico, no seu capítulo segundo, no artigo primeiro, onde são definidas as irregularidades que não podem estar presentes em nenhum membro do clero. Dentre estas, encontram-se aquelas consideradas como defeitos do corpo, onde estão enquadrados aqueles que não têm um dedo polegar ou um indicador, ou ambos; que usam uma perna mecânica ou que estão impossibilitados de usar as mãos; aqueles que tremem tanto que poderiam 'derramar o preciosíssimo Sangue'; os cegos ou que tenham deficiência visual tão grave que não conseguem ler o conteúdo do missal; os casos de surdez que não consigam ouvir a voz do ajudante de um ato litúrgico; os que gaguejam de tal maneira que provoquem riso e desprezo; os que são vítimas de paralisias ou deformações que causem o andar típico de um 'coxo', e que não conseguem ficar no altar sem bengala ou muleta; os que estão desfigurados por mutilações ou por outra causa...; os que têm corcunda muito grande que provoque riso ou que os impeça de se colocar em posição ereta (SILVA, 1986, p. 306-307). Estes regulamentos da Igreja Católica, como podem ser percebidos, colocam muita ênfase na perfeição e aparência física dos candidatos ao exercício do sacerdócio. A exigência de "perfeição" física, sensorial e cognitiva, se dá por motivos práticos e dogmáticos. No caso dos primeiros, trata-se da necessidade que os sacerdotes tem para realizar os rituais das celebrações, dentro de um padrão construído há séculos. Por sua vez, os últimos referem-se ao fato de a deficiência estar associada a ação de forças demoníacas ou ao castigo divino, Enquanto forma de punição por pecados cometidos, os quais podem ter sido obra tanto daquele que a possui quanto de seus ancestrais. Nos últimos tempos, com o aparecimento e expansão de inúmeras seitas pentecostais, as explicações teológicas para a causa das deficiências, foram ainda mais reforçadas, com os festivais de "curas e milagres" promovidos por estas instituições religiosas. Nestes eventos, pessoas com deficiência ou intérprete das mesmas, são exorcizadas, enquanto forma de superação de suas anomalias física, ou sensorial e ou cognitiva. Para piorar a situação, estes pag:65 procedimentos ganharam espaço nos veículos de comunicação de massa, tais como rádio e televisão e vem potencializando o processo de assimilação por parte do imaginário social, das antigas idéias medievais a respeito das causas da deficiência e, com isto, contribuindo ainda mais na estigmatização das pessoas que a possui. O que se pode concluir a respeito da teologia cristã ao longo deste período histórico em relação às pessoas com deficiência, é que ela se manteve firme em sua postura excludente. Porém, além de estar alicerçada em seus princípios dogmáticos, com o capitalismo também ganhou um caráter prático, demonstrado tanto nas posturas do catolicismo quanto nas do protestantismo. 4.3 A CIÊNCIA E AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: DA VISÃO METAFÍSICA AO CIENTIFICISMO MÉDICO Desde os primeiros passos do modo de produção capitalista, a burguesia foi compreendendo a necessidade de romper com o pensamento teológico que havia influenciado toda a Idade Média, buscando produzir novos conhecimentos que pudessem ajudar a alavancar o desenvolvimento das forças produtivas. Com esta finalidade, já a partir do século XVI começaram a ocorrer novas descobertas cientificas, principalmente nas áreas da física, da química e da biologia. Tal fato, que levou os homens a centrar suas preocupações na realidade, também trouxe algumas modificações na forma da sociedade compreender o porquê da existência das pessoas com deficiência. O pensamento teológico que havia perdurado durante toda a Idade Média em relação as pessoas com deficiência e a explicação do porquê da existência das mesmas, começa a ser alterado com os trabalhos de Paracelso (1493-1541) e Cardano (1501-1576). Estes dois estudiosos, que dentre várias outras atividades, exerciam a medicina alquimista e através da mesma contribuiram para o surgimento de um novo enfoque na explicação a respeito das causas da existência das deficiências. Na concepção de Paracelso, a causa das deficiências não estava relacionada ao pecado e nem a presença de maus espíritos. Para ele as pessoas que as possuíam "são doentes ou vítimas de forças sobre-humanas cósmicas ou não, e dignas de tratamento e complacência" (PESSOTTI, 1984, p. 15). Seguindo na mesma direção de Paracelso, Cardano procurou explicar as causas das deficiências sem se fundamentar nos princípios teológicos do cristianismo. Para tanto, pag:66 uniu ao misticismo neoplatônico a magia, a astrologia e a cabala, professando também sua crença em poderes especiais e em forças cósmicas que podem ser responsáveis por comportamentos inadequados. Loucos e deficientes são vítimas de tais poderes e, por vezes, até dotados de poderes mágicos desordenados, o que os torna merecedores de atenção médica (PESSOTTI, 1984, p. 5-16). A contribuição fundamental destes pesquisadores, apesar de defenderem a interferência de "forças cósmicas" enquanto causa das deficiências, residiu no fato destes terem admitido a possibilidade da interferência da medicina no tratamento das mesmas. Com este enfoque abriu-se uma pequena fresta no obscuro pensamento medieval, por onde busca-se construir uma nova explicação a respeito do porquê da existência das pessoas com deficiência e a questão começa a dar os primeiros passos por trilhas terrenas. Nos séculos que se seguiram a Cardano e Paracelso, devido a novos avanços científicos, a medicina se desenvolveu e ganhou cada vez mais importancia no diagnóstico e cura de alguns problemas físicos, sensoriais e psíquicos do ser humano. Este desenvolvimento, de maneira mais geral produziu algumas modificações significativas no conhecimento da "natureza" das deficiências, embora mantendo uma visão incerta e preponderantemente fatalista acerca do futuro e das possibilidades das pessoas com deficiência. Ainda no século XVI a origem patológica tanto da deficiência como da loucura havia se tornado norma de jurisprudência já em 1534, desautorizando completamente as visões supersticiosas em ambas. Loucura e deficiência mental foram definidas em jurisprudência, concebidas como bobo ou idiota de nascimento à pessoa que não pode contar até vinte moedas, nem dizer-nos quem era seu pai ou sua mãe, quantos anos tem, etc... De forma que não parece haver possuído conhecimento de qualquer razão da qual se pudesse beneficiar ou que pudesse perder (PESSOTTI, 1984, p. 17). Com o fortalecimento do enfoque especulativo da medicina, o poder de identificar e classificar as deficiências passa a estar centralizada no clínico. Agora é o médico quem avalia e prescreve a forma pela qual a sociedade deve proceder em relação as pessoas com deficiência. "O médico é o novo árbitro do destino do deficiente. Ele julga, ele salva, ele condena" (PESSOTTI, 1984, p. 68). Destacou-se neste enfoque a figura de J. Emanuel Fedéré (1764-1835) - médico nascido na Sabóia, região de grande incidência de bócio e que se tornou famoso pelas amplas reformas que introduziu nos hospitais destinados a dementes e amentes, de modo a humanizar-lhes a vida e a renovar os processos de tratamento médico-hospitalar. Este homem da medicina, elaborou o "Tratado do bócio e do cretinismo", publicado em 1791, onde pag:67 reafirma o fatalismo hereditário da deficiência mental e transforma em lei a idéia de que o bócio é uma degenerescência cujo resultado final é o cretinismo. Com tal tratado, que foi elaborado a partir de um trabalho desenvolvido por uma comissão nomeada pelo governo, formula-se a lei de que o bócio é o primeiro degrau de uma degenerescência cuja última expressão é o cretinismo, "que ele não é mais que o efeito imediato do bócio tendo por causa remota a mesma que a do bócio... A propagação do cretinismo implica sempre pais afetados de bócio." (PESSOTTI, 1984, p. 69). Conforme este diagnóstico, os pais doentes de bócio terão, conseqüentemente, filhos cuja intensidade da degradação intelectual dependerá do grau da doença que lhe foi transmitida. Com base neste pressuposto, o problema da deficiência mental encontra sua solução radical na segregação ou esterilização dos adultos afetados por bócio, de um lado. De outro, implica que a erradicação das causas da incidência do bócio eliminaria, senão todas, a maior parte das incidências de deficiência mental. Isto porque, eliminado o bócio não mais existiriam cretinos e, portanto, não haveria os semicretinos a procriar filhos que fatalmente seriam cretinos ou, no mínimo, idiotas ou imbecis (PESSOTTI, 1984, p. 71). A concepção médica e fatalista da deficiência vai ganhando mais força na medida em que o capitalismo se desenvolve e amplia a incorporação e degradação física, sensorial e mental dos trabalhadores, dentre os quais, encontravam-se mulheres e crianças. Com a introdução do maquinismo ao processo de produção ocorrido a partir do final do século XVIII, a exigência de operários possuidores de grande força física, torna-se, em muitos casos, desnecessário, o que cria melhores condições para que o burguês possa dispor, sem ampliar seus custos com mão-de-obra, das mulheres e filhos de operários e, com isto, ampliar a extração da mais-valia. Sobre a exploração de mulheres e crianças na França, nas primeiras décadas do século XIX, a qual não era muito diferente nos demais países industrializados da Europa, Villermé descreve: eles [os trabalhadores] compõem-se principalmente de famílias pobres carregadas de crianças de pouca idade... É preciso vê-los chegar a cada manhã à cidade e partir a cada tarde. Existe entre eles uma multidão de mulheres pálidas, magras, caminhando com os pés nus no meio da lama... e um número ainda mais considerável de crianças não menos sujas, não menos macilentas, cobertas de farrapos sujos com o óleo dos teares que caiu sobre eles enquanto trabalhavam. Essas crianças, mais resguardadas da chuva pela impermeabilidade de suas roupas, (regadas pelo óleo imundo dos teares)... levam na mão ou escondem sob as roupas ou de qualquer maneira o pedaço de pão que deve alimentá-las até o momento de voltarem para casa (VILLERMÉ apud ROCHA, 1997, p. 20). pag:68 Com o advento do maquinismo, o ritmo das atividades produtivas nas fábricas, passou a ser determinado pela máquina e as extensas jornadas de trabalho passaram a fadigar cada vez mais o trabalhador. Estes dois fatores tornaram um grande número de operários em pessoas com deficiência, dentre os quais, encontra-se uma enorme quantidade de crianças e jovens, os quais após serem degradados no processo de produção, tornam-se, do ponto de vista da lógica capitalista, seres humanos inválidos, incapazes e, portanto, inúteis. Como exemplo deste aspecto da implantação do maquinismo ao processo de produção, pode ser demonstrado alguns dados sobre o que ocorria na Europa do século XIX, onde na França a quantidade de jovens com deficiência provocada pelo trabalho assume um quadro alarmante. Em 1837, o próprio Villermé, estudando as condições dos dez departamentos mais industrializados, constatará que, dentre dez mil jovens alistados, a inacreditável porcentagem de inválidos e deformados é de 89,8%, ou seja, mesmo entre os sobreviventes da indústria, nove em cada dez estavam definitivamente deformados por ela. Os números da destruição industrial da juventude francesa caem um pouco nos anos seguintes, mas continuam alarmantes. Os alistados recusados por deficiência física em várias regiões francesas passam de 60% no início dos anos 40. O relatório nacional sobre o estado físico dos rapazes alistados em 1866 revela que, simplesmente, um terço da população de jovens franceses tem que ser reformada (recusada para o serviço militar) por incapacidade física: raquíticos, mutilados, reumáticos, corcundas e mancos são algumas das categorias nas quais se enquadram a juventude que a espoliação fabril e sua miséria degradaram (ROCHA, 1997, p. 21-22). Mais espantoso que tal revelação, foi a resposta que a ciência médica ofereceu a este verdadeiro massacre promovido pela indústria capitalista. Para explicar o grande número de pessoas com deficiência no começo da segunda metade do século XIX, Augustin Morel formula a teoria da degenerescência humana, a qual trata-se, como se sabe, de uma obra pré-darwinista de 1857 que, apoiada na doutrina medieval da queda, supõe que a espécie humana sofreu um desmembramento involutivo, de onde se originariam os degenerados. A degeneração seria sempre hereditária e progressiva, de tal forma que, pelo seu inevitável agravamento nos descendentes, conduziria a (...) estirpe degenerada a extinção (ROCHA, 1997, p. 22-23). Não há muita diferença entre o tratado de Fedéré e o de Morel, no que se refere às causas da deficiência mental ao entender o cretinismo como produto fatal do bócio. "Morel, porém, admite que a idiotia e a imbecilidade podem também resultar de outra linha de degenerescência da espécie: a das causas tóxicas, mais precisamente o alcoolismo dos pais" (PESSOTTI, 1984, p. 136). Por meio do tratado da degenerescência humana, pode-se isentar o processo de trabalho enquanto causador da degradação física, sensorial e mental de homens, mulheres e crianças. pag:69 Plena de convivência patronal, a ciência da degenerescência já tinha comprometido seus diagnósticos profissionais quando formulara sua doutrina: os resultados da degradação causada pela fábrica serão diagnosticados como manifestação sintomática de degenerados que já vinham se afastando da normalidade humana há gerações (ROCHA, 1997, p. 22). Com este tratado, agrava-se ainda mais a já difícil condição de existência das pessoas com deficiência, dentre elas as que possuem problemas mentais, as quais passaram a ser estigmatizadas enquanto seres possuidores de um mal hereditário. A partir do Tratado das degenerescências de Morel, a deficiência mental regride ao status de ameaça à segurança pública e à saúde das famílias e povoações. É a nova peste, a nova lepra a requerer a mobilização defensiva dos imunes; não que pudesse alguém ser contagiado enquanto pessoa: o sangue, a genealogia, a raça é que ficavam expostos ao contágio fatal (PESSOTTI, 1984, p. 145). A partir deste tratado as pessoas com deficiência passam a ser consideradas uma ameaça a existência da espécie humana e a prática medieval de recolher os "desajustados sociais" em manicômios, hospícios e leprosários ganha mais força, agora fundamentada num pseudo conhecimento científico. A fábrica, que já enclausurara o trabalho, agora internará também o resultado de sua ação sobre a população: serão trancafiados nos morredouros manicomiais, para serem devidamente exterminadas, as vítimas que carregavam no corpo os sinais da "degeneração" com a qual a fábrica - e nova medicina mental - os estigmatizara" (ROCHA, 1997, p. 22-23). O fatalismo da teoria de Morel gerou idéias e argumentos que contribuíram para a construção de teorias alarmistas a respeito da existência das pessoas com deficiência. Uma destas foi a elaborada por Tredgold, em 1909, o qual escreveu: proponho, como princípio geral, que a partir do momento em que uma nação alcance um dado nível de civilização, e em que a ciência médica e os sentimentos humanitários concorram para prolongar a vida dos desequilibrados, se torne então indispensável que essa nação adote leis sociais que garantam que esses incapazes não propagarão a sua espécie (TREDGOID apud PESSOTTI, 1984, p. 186). Seguindo nesta mesma direção, em 1912, Fernal escreveu o seguinte a respeito das pessoas com deficiência mental: O período atual caracteriza-se por uma tomada de consciência brutal, tanto por parte dos profissionais como do público, a respeito da extensão considerável da deficiência mental, e de sua influência como fonte de miséria para o próprio doente e sua família, como fator causal do crime, da prostituição, da pobreza, dos nascimentos ilegítimos, da intemperança, e de outras doenças sociais complexas. O fardo social e econômico da deficiência mental simplesmente não é muito conhecido. Os deficientes mentais constituem uma classe parasita, rapace, pag:70 completamente incapaz de bastar-se e de tratar de seus próprios assuntos. A sua grande maioria vem a tornar-se, de uma maneira ou de outra, num encargo público. Causam um desgosto inconsolável à sua família e são uma ameaça e um perigo para a comunidade. As mulheres deficientes mentais são quase invariavelmente imorais e, em liberdade, são geralmente agentes de propagação de doenças venéreas, ou dão origem a crianças tão deficientes como elas... Todo deficiente mental, e principalmente o imbecil ligeiro, é um criminoso em potencial, que necessita apenas de um meio favorável para desenvolver e exprimir suas tendências criminosas (FERNAL apud PESSOTTI, 1984, p. 186). Com os enfoques fatalista, hereditário e alarmista, a ciência inaugura uma nova visão supersticiosa a respeito das causas da existência das pessoas com deficiência. Agora, em pleno século XX, não é mais a vontade divina ou as ações demoníacas a explicarem a causa da deficiência. Sendo assim, deve-se abandonar a busca pelo perdão divino ou o exorcismo de demônios, pois o mal deixou de ser algo que tenha se incorporado àqueles com graves deficiências físicas, ou sensoriais e ou cognitivas, para ser ela própria, a pessoa com deficiência, este mal. Desta forma, aqueles que pertencem a este segmento social, são transformados em um novo demônio, a perturbar a ordem vigente e, pior ainda, passam a ser uma ameaça para a existência da espécie humana. Ao contrário da Idade Média, que buscava expulsar as forças demoníacas da pessoa com deficiência, agora as ações têm por finalidade erradicar as mesmas do convívio social. Para tanto não basta os manicômios, reformatórios e institutos de regeneração, pois a nova "peste" exige medidas mais contundentes. Dentre estas cabe destacar a implantação de medidas eugenistas, como as adotadas nos Estados Unidos da América, e a da eliminação, adotadas nos campos de concentração nazistas, daqueles que eram considerados inúteis para a sociedade. No enfrentamento das idéias surgidas a partir da teoria da degenerescência humana e das explicações metafísicas produzidas ao longo de toda a história dos homens, vem sendo importante os progressos obtidos, dentre outras, em algumas correntes da bioquímica, da genética, do diagnóstico médico, da obstetrícia, da psicologia, da pedagogia e da sociologia, a respeito das causas e da forma de agir em relação às pessoas com deficiência. Tais avanços, ao menos em determinados meios científicos, estão desmistificando as causas das deficiências e, desta forma, esvaziando a segurança da postura eugenista e fatalista. Em nosso tempo esse esvaziamento resultou de três condições: o progresso no diagnóstico psicológico da deficiência mental, cujo efeito maior foi invalidar sua concepção unitária, apontando diferenças de qualidade, de grau e de recuperabilidade, de sorte a atenuar os alarmes eugenistas; como outra condição ocorreu o avanço da medicina a descrever novas entidades clínicas nas áreas de audiologia, fonação, neurologia e psiquiatria infantil, o que significou a invalidação das estatísticas de Cattell e outros, nas quais todas essas entidades nosológicas haviam sido designadas afoitamente de deficiências mentais; uma terceira condição foi a pag:71 descoberta de possibilidades de prevenção da deficiência mental e de técnicas especiais de educação (PESSOTTI, 1984, p. 191). Mas estes progressos não têm sido suficientes para retirar o predomínio das ciências médicas no momento de diagnosticar e determinar a extensão da deficiência e a permanência de tal procedimento acaba reforçando a confusão entre doença e os problemas físicos, sensoriais e cognitivos. Dentre tantos exemplos, cabe destacar o contido na legislação federal, na parte que se refere ao acesso das pessoas com deficiência, as vagas reservadas de trabalho no serviço público, a qual estabelece a exigência de apresentação, pelo candidato portador de deficiência, no ato da inscrição, de laudo médico atestando a espécie e o grau ou nível da deficiência, com expressa referência ao código correspondente da Classificação Internacional de Doença - CID, bem como a provável causa da deficiência (BRASIL, 1999, art. 39, inc. 1). O que se pode perceber, é que a formulação médica a respeito das causas e conseqüência das deficiências, produzida ao longo da ultima metade do segundo milênio, apesar de alguns avanços verificados nos últimos tempos, buscou retirar a causa das deficiências do campo da metafísica, mas dando-lhe um enfoque fatalista e transformando cegos, surdos e aqueles com problemas físicos e ou cognitivos, em seres doentes e ameaçadores para a existência da espécie humana, um novo demônio a amedrontar a sociedade. Com a adoção de tal linha de pensamento, a medicina acaba contribuindo para isentar os fatores sociais, a respeito das causas e efeitos das deficiências. Além disto, ao se tomar as pessoas que as possuem, enquanto seres doentes, consideram-nos impossibilitados para o trabalho formal, pois são colocados na condição de inválidos, incapazes e inúteis e, desta forma, contribuindo para a naturalização da exclusão das pessoas com deficiência. 4.4 A EDUCAÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO CAPITALISMO: A SEGREGAÇÃO DOS ELEMENTOS PERTURBADORES DA ORDEM BURGUESA Antes de adentrar na discussão sobre a educação da pessoa com deficiência na sociedade burguesa, apresentam-se algumas considerações a respeito de quais têm sido as necessidades educativas que se impõem a partir do desenvolvimento das relações capitalista de produção. Como demonstrado no início deste capítulo, com a implantação do capitalismo o modo de produzir os bens materiais necessários para a vida da sociedade transformou-se profundamente. Rompeu-se com o modo de produção feudal e com as corporações de ofícios pag:72 e estabeleceu-se uma nova forma de propriedade onde o trabalho assalariado transformou-se no motor do processo produtivo. Inicialmente ocorreu o advento das manufaturas, onde o trabalhador passou a executar apenas atividades simples e rotineiras. Por último, devido à crescente intervenção da ciência como força produtiva, passou-se ao sistema da fábrica e da indústria e o homem passou a ser um simples acessório da máquina. Tais transformações, que representaram o fim do feudalismo e o surgimento do modo de produção capitalista, fizeram com que aos poucos os tradicionais costumes medievais fossem perdendo força e, em seu lugar, nascesse a cultura da sociedade moderna. Para tanto, os novos donos do poder retiraram de cena a nobreza e o clero. Os burgueses compraram as suas terras; a pólvora derrubou os seus castelos. Os navios apontavam agora as rotas de um continente remoto, mais inacessível do que as princesas de Trípoli, que só poderia ser conquistado mediante a indústria e o comércio (PONCE, 1992, p. 112). Esse processo de transformação das relações de produção, que deslocou massas inteiras da população não somente das oficinas artesanais para as fábricas, mas, também dos campos para a cidade, colocou novas necessidades sociais, dentre elas, a de uma educação formal que fosse capaz de dar conta das exigências impostas pelo novo período histórico. Este fato rompe com os tradicionais processos educativos existentes nas sociedades classistas que o antecederam, em especial, o escravismo e o feudalismo. Nesses modos de produção, os membros da classe detentora do poder tinham uma educação diferenciada, que era o ensino escolar formal. Por sua vez, aqueles que pertenciam às classes exploradas eram educados no próprio processo produtivo, ou seja: "o povo se educava no próprio processo de trabalho. Era o aprender fazendo. Aprendia lidando com a realidade, aprendia agindo sobre a matéria, transformando-a" (SAVIANI, 1994, p. 153). Desde cedo as novas classes sociais do capitalismo colocaram-se em luta por uma educação que fosse capaz de instruí-los, em conformidade com as exigências do novo tempo que estava surgindo. "Esta será, apesar de suas contradições, uma característica comum aos povos que se rebelaram contra a Igreja de Roma. Justamente dele surgirá (...) a iniciativa mais avançada de novos modelos de instrução popular e moderna" (MANACORDA, 1997, p. 194). Destacaram-se, nas reivindicações por uma educação voltada para os interesses da nova ordem social, os movimentos reformadores e heréticos. Estas exigências, que eram transmitidas ao imaginário das camadas populares enquanto uma necessidade religiosa, na verdade assentavam-se em princípios econômicos e políticos, pois: pag:73 se a necessidade de ler as Sagradas Escrituras e a capacidade de cada um interpretar a palavra divina nelas contida está na base desta nova exigência da cultura popular, é porém o desenvolvimento das capacidades produtivas e a participação das massas na vida política que exigem este processo (MANACORDA,1997, p. 198). Com as mudanças políticas ocorridas na sociedade burguesa, onde as relações entre os homens se desnaturalizam e passam a ser regidas por leis "construídas" a partir de um "contrato social", surge a necessidade de instrumentalizar o povo para esta nova forma de relação entre os seres humanos. Este acontecimento contribuiu para que a nova classe dominante vislumbrasse na extensão da educação formal até os setores populares, o instrumento capaz de oportunizar ao conjunto da população os conhecimentos e valores, que possam ser "úteis" à nova ordem social. A função da educação, enquanto instrumento de preparação das pessoas para o exercício das atividades políticas, é explicitada por um intelectual do século XVI: antes de tudo uma cidade bem ordenada precisa de escolas, onde as crianças, que são o viveiro da cidade, sejam instruídas: engana-se gravemente, de fato, quem pensa que sem instrução possa adquirir-se uma sólida virtude e ninguém é suficientemente idôneo para governar as cidades sem o conhecimento daquelas letras que contêm o critério do governo de todas as cidades (MELANCHTON apud MANACORDA, 1997, p. 198). Como já apontado, a necessidade de se estabelecer e expandir uma nova educação, além das motivações políticas também se deu por razões técnicas, impostas pelo desenvolvimento do processo produtivo. Quando o antigo artesão foi arrancado de sua corporação e introduzido na fábrica, que tem na ciência moderna uma de suas maiores forças produtivas, também se viu expropriado de seu pequeno conhecimento. Com o avanço do capitalismo para praticamente todo os cantos do mundo, surge a necessidade de expandir a indústria, o que ocorre mediante o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Tal acontecimento levou à substituição cada vez mais rápida dos instrumentos e dos processos produtivos e, com isto, impo-se a necessidade de trabalhadores razoavelmente instruídos, capazes de acompanhar o dinamismo dos novos empreendimentos. Diante da exigência imposta pelo próprio processo de desenvolvimento das relações de produção capitalista, filantropos, utopistas e até os próprios industriais são obrigados, pela realidade, a se colocarem o problema da instrução das massas operárias para atender às novas necessidades da moderna produção de fábrica: em outros termos, o problema das relações instrução-trabalho ou da instrução técnico-profissional, que será um tema dominante da pedagogia moderna (MANACORDA, 1997, p. 272). pag:74 É sobre esse conjunto de transformações e necessidades que a burguesia industrial propõe, nos países capitalistas centrais, a generalização da educação escolar. Mas além dos determinantes técnicos e políticos, que condicionaram tal acontecimento, pode-se agregar aos mesmos uma forte razão de cunho ideológico assentada nos princípios liberais da individualidade, da liberdade, da propriedade, da igualdade e da democracia, os quais foram formulados pela burguesia com a finalidade de combater as idéias feudais que naturalizavam as desigualdades sociais e justificar a nova estrutura de classe surgida com o capitalismo. Para os capitalistas, a nova ordem social é justa, pois permite a mobilidade social, fato este que ocorre a partir dos méritos presentes em cada indivíduo. Com a finalidade de oportunizar a todos as mesmas condições para o desenvolvimento de seus méritos, a sociedade burguesa propõe um instrumento que seja capaz de estar ao alcance de todas as pessoas. Trata-se da constituição de uma educação pública, gratuita e de qualidade, a qual deverá desenvolver as potencialidades que estão presentes em cada um. Se com a escolarização, a pessoa não ascender socialmente, a responsabilidade não poderá ser atribuída a forma de organização do modo de produção capitalista mas, sim, ao próprio indivíduo que não foi capaz de aproveitar as oportunidades que a sociedade lhe ofereceu. Com isto, "as implicações educacionais da nova doutrina, portanto, ultrapassavam o âmbito das exigências do desenvolvimento técnico-científico, sustentando a própria legitimidade das novas instituições econômicas e sociais" (XAVIER, 1990, p. 61). Seja qual tenha sido o principal determinante (técnico, político ou ideológico) que levou a burguesia a propor a expansão do ensino formal até às camadas populares, principalmente nos países do capitalismo central, o certo é que o mesmo se tornou o principal instrumento de transmissão do saber produzido e acumulado ao longo da história da humanidade. Após estas considerações a respeito das necessidades educativas impostas pelo desenvolvimento do modo de produção capitalista, cabe verificar qual o tipo de educação que vem sendo disponibilizado para as pessoas com deficiência, bem como, os objetivos que a mesma busca atingir. Segundo Silveira Bueno (1993), muito pouco tem sido escrito sobre a história da educação especial e o material bibliográfico disponível a apresenta como decorrência da evolução das civilizações, iniciando com a morte dos anormais na pré-história e culminando com o esforço para integração do excepcional na época contemporânea (p. 55). Ainda conforme este mesmo autor, pag:75 essas interpretações sobre o percurso histórico dos excepcionais e da educação especial reproduzem, por um lado, o cientificismo neutro que separa tanto os primeiros quanto a segunda da construção histórica da humanidade, na medida em que a excepcionalidade é vista como uma característica estritamente individual, diferente da espécie, enquanto que a educação especial se confina ao esforço da moderna sociedade democrática de integração desses 'sujeitos intrinsecamente diferentes' ao meio social. Por outro lado, é fragmentada e descontextualizada, na medida em que não os correlacionam nem com o desenvolvimento da educação em geral, muito menos com as transformações sociais, políticas e econômicas por que passaram as diversas formações sociais. Em decorrência, na medida em que não partem das condições concretas de vida e das formas com que os homens se organizam para produzir sua vida material, passam a considerar a 'sociedade moderna', independentemente das formas de sua organização social, como o período em que se está realizando a redenção dos excepcionais (SILVEIRA BUENO,1993, p. 56). Ao longo deste trabalho busca-se mostrar que é preciso compreender o tratamento dispensado às pessoas com deficiência na sua relação com o modo de produção da vida social. Da mesma forma, a discussão a respeito da educação das pessoas com deficiência não deve ser feita a partir daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida (MARX e ENGELS, 1986, p. 37). Ao consultar-se a historiografia a respeito das pessoas com deficiência, pode-se encontrar muitos autores que se dedicaram a pesquisa da história da educação especial, com a finalidade de compreender como que a mesma vem se desenvolvendo ao longo da sua existência. Ao comentar estes estudos, Silveira Bueno (1993), afirma que a maior parte dos escritos que, de alguma forma, se dedica à história da educação especial, considera o século XVI como a época em que se iniciou a educação dos deficientes, através da educação da criança surda. Antes disso, segundo esses autores, os deficientes eram encaminhados aos asilos, onde permaneciam segregados e sem atenção, ou então, viviam como mendigos, sobrevivendo às custas da caridade pública. Esse período é considerado como uma época de precursores, por se restringir somente à criança surda, por não se desenvolver através da instituição escola (como ocorrerá à partir do século XVIII) e por envolver um número reduzido de deficientes (p. 58). A maioria dos historiadores, que se ativeram a pesquisar a história da educação das pessoas com deficiência, afirmam que no século XVI, alguns educadores já se preocupavam com a educação daqueles que pertenciam a tal segmento social, mais especificamente dos surdos. Segundo estes autores, neste século Cardan inventou um código para ensinar os surdos a ler e escrever, à semelhança do futuro código de escrita e leitura Braille para os cegos que surgiria apenas no século XIX. Foi Cardan pag:76 quem influenciou as idéias do monge beneditino espanhol Pedro Ponce de Léon (1520 a 1584), muito dedicado à educação dos deficientes auditivos e que nunca escreveu sobre seu método de trabalho (SILVA, 1986, p. 227). Segundo a maioria dos pesquisadores, a educação de pessoas com deficiência teve início na Espanha, ainda na primeira metade do século XVI. Conforme os mesmos, o trabalho educativo junto a este segmento social, foi iniciado com surdos pertencentes às elites da sociedade. É atribuído ao monge beneditino Pedro Ponce o papel de iniciador da educação especial, através de seu trabalho com crianças surdas, iniciado em 1541, na Espanha, tendo educado uma dezena de surdos-mudos, filhos todos eles de grandes personagens da corte espanhola, morrendo em 1549 (QUIRÓS e GUELER apud SILVEIRA BUENO, 1993, p. 58). Ainda no século XVI, outras pessoas procuraram contribuir para o desenvolvimento de um método que fosse capaz de garantir o ensino as pessoas surdas. Dentre estas, encontra-se o médico francês Laurent Joubert (1529 a 1582), o qual afirmava que a habilidade existia em toda e qualquer criança, mesmo nas nascidas surdas ou que mais tarde viriam se tornar surdas. O mestre dessas crianças deveria agir com paciência e cuidado, pois da mesma forma como uma criança aprende uma língua estrangeira poderá aprender a se comunicar em seu próprio ambiente se ela for surda. Devia o mestre começar por palavras simples e pequenas, reforçando sempre as expressões faciais. E acrescentava sua enfática opinião: a criança com deficiência auditiva aprenderia a falar mesmo sem se ouvir, desde que ensinada com paciência (MULLETT apud SILVA, 1986, p.228). Ainda segundo este mesmo autor (p. 242-243), no século XVII podem ser destacados como grandes expoentes na educação de pessoas surdas, os nomes do espanhol Juan Pablo Bonet e do inglês John Bulwer. O primeiro defendia que a melhor idade para que uma criança surda pudesse ser ensinada a falar, era entre os seis e oito anos e, ainda, afirmava que havia basicamente duas causas que levavam uma pessoa a não se expressar oralmente: a mais importante era a surdez; a outra podia ser algum eventual defeito na língua. O último propunha que as pessoas, com um olhar observador, podiam entender o que lhes é dito oralmente pela observação dos movimentos dos lábios e, desta forma, buscando provar que uma criança nascida surda pode ser ensinada a ouvir o som das palavras com seu olhar e de aprender a falar sua língua. Além das referências ao trabalho de preceptores de crianças surdas na Espanha e na Inglaterra, existem também relatos sobre a atuação de outros profissionais em diversos países, tais como: "na Itália (Francesco Lana Terzi), na França (Lucas e Rousset), na Holanda (Johan pag:77 Conrad Amman) e na Alemanha (Wilhelm Kerger), todos ainda no século XVII ou início do XVIII" (QUIRÓS e GUELER apud SILVEIRA BUENO, 1993, p. 58-59). Apesar dos relatos acima irem ao encontro daqueles que afirmam que a educação das pessoas surdas foi iniciada nos século XVI, existem outros que apontam que tais procedimentos já ocorriam em períodos anteriores. Dentre estes, cabe destacar: Rodolfo Agrícola (...), ainda no século XV, declarou (...) haver visto um surdo que havia aprendido a ler e escrever, apesar de estar privado da audição desde seus primeiros anos de vida e que, por conseqüência, era também mudo (...) Rabelais no século XV, que incluiu em uma de suas obras (O terceiro livro de fatos e ditos heróicos de Pantagruel) um personagem surdo que podia entender o que lhe falavam, através da leitura dos lábios (...) e de Bartolo, que, ainda no século XIV, deixou registrado o fato (...) de que um surdo poderia ter leitura de lábios (QUIRÓS e GUELER apud SILVEIRA BUENO, 1993, p. 60). Diante destes últimos relatos talvez possa ser mais prudente afirmar que o processo de educação de pessoas surdas seja anterior ao século XVI. Porém, mais importante do que datar o seu inicio é perceber o seu caráter classista, pois, na Espanha a quase totalidade das crianças surdas educadas por preceptores pertencia à nobreza, já na Inglaterra e na Holanda, esse atendimento se estendia a negociantes abastados que já possuíam um certo poder, mesmo que somente econômico, embora o poder político permanecesse nas mãos da nobreza (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 59). A educação de pessoas cegas também não é um acontecimento que teve início apenas no século XVIII. Existem algumas informações que dão conta de que já nos primeiros tempos da sociedade burguesa, alguns cegos foram educados e, mesmo apesar dos poucos recursos didático-pedagógicos, alcançaram um bom nível de aprendizagem. Esta educação, assim como aquela oferecida a surdos, também era um "privilégio" daqueles cegos que pertenciam as classes dominante, pois, a par daqueles milhares de cegos infortunados, pertencentes ao povo miúdo, que viviam à própria sorte ou internados em asilos, alguns poucos, nesse mesmo período, conseguiram se destacar, não porque tivessem recebido atendimento especializado, mas porque a limitação imposta por sua deficiência não impedia nem o contato social, nem a aprendizagem de conhecimentos, com exceção da escrita, porque ambos poderiam se basear exclusivamente na linguagem oral. É claro que pertenciam às elites, mas não podem ser considerados como dependentes ou desassistidos" (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 61). Como fatos comprobatórios a respeito da educação de cegos pertencente as elites dominantes nos primeiros séculos do modo de produção capitalista, podem ser relatados o nome de algumas pessoas, que ganharam destaque nos escritos de historiadores que buscaram compreender a vida daqueles que possuíam algum tipo de deficiência ao longo do período. pag:78 Dentre estas, podem ser destacadas: Antonio de Cabezón, compositor cego que viveu na Espanha ainda no começo do século XVI, que foi um dos maiores e mais conceituados compositores de música para órgão da Espanha, Cabezón nasceu em Castrillo de Matajudíos no dia 30 de março de 1500 e morreu em Madri no ano de 1566. Cego desde a primeira infância, conseguiu a custo superar todas as dificuldades que se lhe interpunham e em 1521 conseguiu iniciar seus estudos em Palencia. Alguns anos após, já com 26 anos de idade, foi designado organista e clavicordista da Rainha Isabel da Espanha, tal a sua competência na execução da música sacra nesses dois instrumentos (SILVA, 1986, p. 232). Também são reconhecidas enquanto pessoas cegas que ganharam grande destaque ao longo do período, os nomes de Nicholas Saunderson, no século XVII, se destacou como matemático, chegando a lecionar algum tempo em Cambridge; Jacob de Netra, no mesmo século, elaborou sistema de letras em relevo que, ao final de sua vida, se constituiu em pequena biblioteca; Maria Thereza von Paradis, no século XVIII, tornou-se concertista famosa (FRENCH apud SILVEIRA BUENO, 1993, p. 61). Um dos casos mais ilustrativo é o do escocês John Metcalf, o qual viveu durante o século XVI e ficou cego ainda criança, com sete anos de idade. Sobre ele foi escrito que sempre foi muito hábil e de quando em quando as pessoas desconfiavam que não era cego devido à sua extrema facilidade em se movimentar, cavalgar e em nadar. Sua genialidade levou-o a dedicar muito de seu tempo à construção de pontes e de estradas. Foi conhecido nos meios oficiais ingleses como 'Blind Jack'. Sua competência comprovada na remodelação de estradas em péssimas condições e na construção de pontes tornou-o uma figura imortal na história das estradas em todo o mundo (SILVA, 1986, p. 251). Antes de adiantar no tempo esta pesquisa e adentrar na época da revolução industrial, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre a situação das pessoas com deficiência mental. A maioria dos escritos a respeito do assunto apontam que, "nos séculos XVI e XVII, esses deficientes eram encaminhados aos asilos, já que não se estabelecia qualquer diferença entre eles e os loucos" (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 62). Segundo este autor, essa afirmação é parcialmente correta por duas razões: em primeiro lugar, grande parte dos deficientes mentais não eram detectados, na medida em que a realidade social não exigia níveis de atuação individual que tornasse necessária a sua determinação. Assim, somente aqueles hoje considerados como os mais graves é que deveriam ser incluídos no rol da loucura (p. 62). Porém, a internação nos hospícios e asilos não pode ser entendida enquanto uma ação praticada apenas com os loucos e aqueles que possuíam deficiência mental. Para lá também pag:79 eram levadas pessoas pobres que fossem cegas, surdas, possuidores de graves limitações físicas e outros considerados enquanto elementos perturbadores da ordem vigente. "O que ocorreu, na verdade, foi o isolamento daqueles que interferiam e atrapalhavam o desenvolvimento da nova forma de organização social, baseada na homogeneização e na racionalização" (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 63) Ao findar a discussão a respeito do processo de educação das pessoas com deficiência, nos séculos XVI e XVII, pode-se afirmar que o mesmo representou o início do movimento contraditório de participação-exclusão que caracteriza todo o desenvolvimento da sociedade capitalista, que se baseia na homogeneização para a produtividade e que perpassará toda a história da educação especial (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 63). O período subsequente é marcado pela institucionalização da educação especial, com a criação das primeiras escolas públicas destinadas ao atendimento de pessoas com deficiência. Este fato vai se dar na França, na segunda metade do século XVIII, em plena agitação liberal por mudanças políticas. A primeira, no ano de 1760, foi o Instituto Nacional de Surdos Mudos e, logo em seguida, em 1784, era criado o Instituto dos Jovens Cegos, que inicialmente tiveram a direção, respectivamente, do Abade L'Epée e de Valentim Haüy. Após alguns anos, enquanto a escola de L'Epée adquiriu o estatuto de Instituto Nacional, a de Haüy se transformou escancaradamente em asilo com trabalho obrigatório (...). [No entanto] esse privilégio era apenas aparente. Embora a escola de surdos não se transformasse abertamente em asilo, não se pode esquecer que ela também era um internato. A diferença residia no fato do surdo poder controlar o ambiente, possibilitando sua saída da instituição para o trabalho (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 69). Foi no instituto de cegos de Paris que um jovem de 15 anos desprovido da visão desenvolveu um sistema de pontos em relevo, o qual deu um grande impulso no processo de escolarização daqueles que necessitam desenvolver a leitura por meio do tato. O seu criador foi Louis Braille, em 1824, o qual passou, a partir de então, a dedicar boa parte de seu tempo tentando fazer com que seu sistema fosse aceito pela instituição da qual fazia parte. "O sistema braille só foi reconhecido oficialmente pelo Instituto como o ideal na substituição da linguagem escrita, em 1854, isto é, dois anos após a morte de seu criador" (FRENCH apud SILVEIRA BUENO, 1993, p. 74). Segundo este mesmo autor, Louis Braille nasceu em Coupvrai, em 1809, filho de um seleiro. Ficou cego por um ferimento com uma sovela, quando brincava na oficina de seu pai, aos três anos de idade; a infecção pelo ferimento logo se alastrou para o outro olho. Apesar da cegueira, Braille foi aceito na escola de sua cidade, destacando-se como aluno dedicado e inteligente, onde permaneceu até os dez pag:80 anos, quando a escola foi fechada por divergências entre o pároco e o mestre-escola. Como não tinha possibilidades de se deslocar para a cidade vizinha, como fizeram muitos de seus colegas, Braille foi encaminhado para o Instituto dos Jovens Cegos, onde se destacou também como estudante e, depois, como professor, além de seus dotes como pianista e organista (FRENCH apud SILVEIRA BUENO, 1993, p. 73). A partir da consolidação destas instituições de ensino na França, a grande maioria dos países acabaram adotando tais procedimentos. No Brasil, segundo Silva (1986, p. 285-287), ainda na segunda metade do século XIX, foram criados o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, atualmente Instituto Benjamim Constant e o Instituto dos Surdos-Mudos, hoje conhecido como o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Segundo Silveira Bueno (1993, p. 64), a análise a respeito da educação especial que começou a ser estabelecida a partir do século XVIII, com a criação das primeiras instituições na Europa, vem sendo feita somente através da perspectiva da extensão das oportunidades educacionais. Na opinião deste autor, se o surgimento das primeiras instituições escolares especializadas correspondeu ao ideal liberal de extensão das oportunidades educacionais para todos, aspecto sempre presente na educação especial no mundo moderno, respondeu também ao processo de exclusão do meio social daqueles que podiam interferir na ordem necessária ao desenvolvimento da nova forma de organização social (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 64). Com a criação das instituições de ensino especializado para cegos e surdos, a sociedade burguesa buscou resolver dois problemas: retirar estes "desajustados" do convívio social e fazê-los minimamente produtivos para torná-los úteis ao capitalismo. Desta forma, "a situação desses dois tipos de deficientes, em verdade, era muito semelhante: mão-de-obra manual e barata, reunida em instituição, que retirava os desocupados da rua e os encaminhava para o trabalho obrigatório" (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 69). A bem da verdade, é importante salientar que tais procedimentos não atingiam a todas as pessoas cegas ou surdas, pois enquanto, aos cegos e surdos pobres se reservava trabalho manual imbecilizante, um arremedo de salário quando muito, ou senão um catre e um prato de comida. Os que não tiveram o infortúnio de nascerem pobres, marca muito mais significativa do que a surdez e a cegueira, apesar de sofrerem limitações impostas por suas deficiências, puderam, contudo, usufruir da vida familiar e da riqueza produzida (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 70). Neste sentido pode-se afirmar que a condição de classe social a que pertence a pessoa com deficiência, pode ser mais significativa na determinação da sua trajetória social do que uma cegueira, ou uma surdez, ou uma limitação física e ou algum problema cognitivo. Para pag:81 demonstrar este caráter classista na determinação da existência das pessoas com deficiência, é importante comparar a vida de Metcalf (nascido em 1717) e de Braille (1809-1852), ambos cegos e pertencendo a classes sociais antagônicas. Metcalf, sem o concurso de qualquer instituição especializada, cem anos antes tornou-se comerciante, viajante e projetista de estradas, mantendo vida totalmente independente. Braille, a quem o mundo reverencia, a ponto de ter, em 1952, seus restos mortais transferidos de sua cidade natal para o Pantheon de Paris - que criou, aos quinze anos de idade, sistema substitutivo da escrita até hoje considerado o mais adequado, que estudou no Collége de France e que obteve notoriedade junto à elite de sua época por seus dotes artísticos e por sua inteligência - esse mesmo Braille não conseguiu reunir condições para se tornar independente do Instituto (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 75). Ainda no final do século XIX a prática em relação às pessoas com deficiência mental continuou praticamente a mesma do inicio do capitalismo, ou seja, a internação em hospícios, embora, cada vez mais, aqueles que apresentavam condições mínimas também passaram a ser obrigados a se submeterem às exigências do processo produtivo. Este fato pode ser observado nas palavras de Chambart, o qual afirmava que: não se pode transformar uma criança idiota num homem inteligente (...) mas é possível, graças a um conjunto de recursos higiênicos e pedagógicos que não podem ser aplicados senão em estabelecimentos especiais (...) desenvolver o que resta dos suprimentos cerebrais, transformando um bruto inconveniente, perigoso, inútil e perturbador em um sujeito decente, inofensivo e capaz de prestar à sociedade alguns serviços em troca dos cuidados e da proteção que recebe dela (CHAMBART apud PESSOTTI, 1984, p. 164). A partir da adoção de tais procedimentos, além da prática segregativa das pessoas com deficiência mental, verificado no período medieval, o capitalismo buscou fazer com que estas ajudassem a aliviar o "pesado fardo social" que as mesmas representam. Chambart, procura justificar tal procedimento afirmando que "cumprindo o dever de assistir o idiota, "a sociedade tem o direito de exigir do idiota (...) que ajude (...) a aliviar a carga que esse lhe impõe", o que "só se consegue ensinando o idiota a não destruir e a trabalhar (...)" (CHAMBART apud PESSOTTI, 1984, p. 164). Ao longo do século vinte, a prática segregadora dos que não estão ajustados à lógica de funcionamento do capitalismo, continuou sendo desenvolvida pela educação especial. Agora esta, além de dar conta daqueles com deficiência físicas, ou sensoriais e ou cognitivas, estendeu seus tentáculos e abocanhou pessoas com distúrbios emocionais e de linguagem, as quais passaram a ser a grande maioria de seus "educandos". Desta forma, pag:82 a expansão da educação especial, iniciada no século passado [século XIX], foi assumindo, no decorrer do século XX, proporções cada vez maiores, que se encaminharam no sentido de sua institucionalização como sub-sistema significativo dentro do sistema educacional, na maioria dos países ocidentais. A expansão quantitativa ocorreu, de fato, nos países capitalistas centrais. Nestes, o crescimento das matrículas em educação especial sobrepujou o das matrículas gerais (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 76-77). A educação especial brasileira, nascida no século XX, com a criação dos institutos imperiais para meninos surdos e cegos, segue basicamente a mesma trajetória ocorrida nos países desenvolvidos, ou seja: expansão da rede de atendimento, absorção de crianças com problemas antes não incorporadas por ela, diversificação dos serviços oferecidos e organização no plano nacional como sub-sistema educacional, mas, como sistema capitalista periférico e devido às suas próprias especificidade econômicas, políticas e culturais, apresenta um percurso que, embora tenha como base a expansão da sociedade capitalista, responde a essas peculiaridades (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 21). Como decorrência destes fatores, a expansão da educação especial no Brasil não tem sido suficiente para dar conta de toda a demanda que lhe vem sendo atribuída e muitos daqueles que dela realmente necessitam permanecem sem condições de ter acesso a mesma. apesar de ter se expandido durante todo este século e mais intensamente a partir dos anos 60, grande parte da população excepcional não é por ela absorvida em razão do número reduzido de vagas em relação à sua incidência; assim, ao contrário dos países centrais, onde, pelo menos os deficientes mentais, físicos, auditivos e visuais têm garantido o acesso a escolaridade, em nosso país somente uma pequena parcela consegue ingressar na escola (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 21). No Brasil, assim como nos demais países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, as políticas educacionais voltadas às pessoas com deficiência vêm reproduzindo a estrutura classista presente na sociedade capitalista. Esta reprodução vem se aprofundando devido à falta de investimentos públicos em recursos humanos e materiais para a escolarização das mesmas, o que faz com que a grande maioria dos surdos, dos cegos e daqueles com graves dificuldades físicas e ou cognitivas, fique sem possibilidade de ter acesso a uma educação de qualidade. Além disso, ao lado da rede pública, a rede privada de educação especial assume papel preponderante na medida em que foi e continua sendo responsável por ampla parcela do atendimento oferecido, através de entidades filantrópico-assistenciais, de um lado, e, de outro, através de empresas prestadoras de serviço de alto nível técnico e elevado custo financeiro. Essa expansão da rede privada de educação especial traz como conseqüências principais, por um lado, a manutenção do atendimento dos excepcionais no âmbito do assistencialismo em oposição ao respeito aos seus direitos como cidadão e, por outro, a distinção entre o atendimento dos excepcionais dos extratos superiores (aos quais são garantidos serviços de pag:83 saúde e de educação qualificados) e dos oriundos das camadas populares, objeto da caridade pública (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 21-22). Na discussão a respeito da história da educação das pessoas com deficiência, pode-se perceber que esta se deu conforme as necessidades imposta pelo processo de desenvolvimento capitalista. Também verificou-se que a mesma reproduziu as relações de classe existentes na sociedade e que a educação especial, que no seu início atendia apenas aqueles com deficiências sensoriais, ou físicas e ou cognitivas, ao passar a incluir, enquanto objetos de sua ação, uma grande quantidade de alunos que podiam estar se beneficiando das salas de aulas comuns, passou a funcionar enquanto instrumento ideológico, no sentido de que acaba atribuindo o fracasso escolar a razões intrínsecas ao próprio educando. Desta forma, ao contrário do que afirma a grande maioria dos estudos que se dedicam à história da educação especial, além da ampliação de oportunidades educacionais às crianças que possuíam dificuldades pessoais que prejudicavam sua inserção em processos regulares de ensino, a ampliação da educação especial espelhou muito mais o seu caráter de avalizadora da escola regular que, por trás da igualdade de direitos, oculta a função fundamental que tem exercido nas sociedades capitalistas modernas: o de instrumento de legitimação da seletividade social (SILVEIRA BUENO, 1993, p. 80). Nos últimos anos, enquanto resposta às muitas décadas de lutas dos movimentos de pessoas com deficiência contra as práticas segregadoras a que estão submetidas, algumas conferências, debatendo o assunto, propuseram o paradigma de sociedade inclusiva, o qual dentre outros postulados, preconiza que a educação escolar deste segmento se dê nas instituições de ensino comum, junto aos demais alunos. Estes postulados encontram-se contidos em documentos como a Declaração de Salamanca, a qual enuncia logo no seu primeiro parágrafo: nós, os delegados da Conferência Mundial de Educação Especial, representando 88 governos e 25 organizações internacionais em assembléia aqui em Salamanca, Espanha, entre 7 e 10 de junho de 1994, reafirmamos o nosso compromisso para com a Educação para Todos, reconhecendo a necessidade e urgência do providenciamento de educação para as crianças, jovens e adultos com necessidades educacionais especiais dentro do sistema regular de ensino e reendossamos a Estrutura de Ação em Educação Especial, em que, pelo espírito de cujas provisões e recomendações governo e organizações sejam guiados (BRASIL, 1997, p. 9). Esta proposta, que vem sendo implantada em muitos países, é apresentada à sociedade brasileira no momento em que a educação está sofrendo uma série de reformas, que têm por finalidade adequá-la ao novo processo de acumulação capitalista, o qual assenta-se na introdução de novas tecnologias, na minimização do estado e na diminuição dos direitos adquiridos pelos setores explorados. Essas reformas ocorrem num momento de pag:84 aprofundamento das desigualdades sociais e têm por finalidade ampliar o número de matriculados, articulam-se perfeitamente à ideologia liberal, pois, conforme a sua pregação, ao se disponibilizar educação para todas as pessoas promove-se a equiparação de oportunidades a todas elas, independentemente de suas condições sociais. Além deste pressuposto ideológico do liberalismo, a proposta de educação inclusiva assenta-se em três falsas premissas, as quais afirmam que a sociedade está se tornando cada vez mais inclusiva, adaptando-se às necessidades especiais de seus cidadãos e descartando as atitudes discriminatórias frente às diferenças individuais. As pessoas estão ficando mais empoderadas em todos os setores de atividade não aceitando imposições por parte de outras pessoas. Os governos, as empresas e as entidades estão procurando trabalhar em parceria (cooperação, alianças estratégicas) para solucionar os problemas da escassez ou falta de recursos nas áreas de saúde, reabilitação, biopsicossocial e/ou profissional, educação escolar, educação profissional, colocação em empregos competitivos, geração de empregos e trabalho, geração de renda, etc (PARANÁ, 2000). A falsidade de tais premissas reside no fato de que na sociedade capitalista aumenta todos os dias o número de pessoas que estão excluídas do trabalho, do consumo, do lazer, dos serviços sociais e da cultura. Não é verdade também, que "as pessoas estão ficando mais empoderadas", pois, embora as informações circulem nos tempos atuais com mais rapidez, elas não podem garantir poder para os homens por duas razões básicas: a primeira é a de que a principal fonte de poder reside no controle dos meios de produção e a segunda está no fato de que as informações que chegam até as pessoas, quase sempre, não correspondem à verdade e são apenas ideologias a serviço das classes dominantes. Por fim, também é falsa a premissa de que os governos, as empresas e as entidades estão procurando trabalhar, em parceria (cooperação, alianças estratégicas). Na verdade, vive-se no processo social do "Estado Mínimo", com a tríade do ajuste estrutural, comandado pelos países ricos: desregulamentação, descentralização e privatização. Apesar da proposta de educação inclusiva estar alicerçada nas premissas do neoliberalismo, as discussões sobre a proposta de educação inclusiva e a luta pela sua concretização, vem se constituindo num espaço privilegiado para a formulação de novas abordagens que possam permitir uma melhor compreensão dos verdadeiros problemas que as pessoas com deficiência vêm enfrentando para sobreviver na sociedade capitalista. Estas abordagens apontam no sentido de que as pessoas com deficiência necessitam não somente reivindicar o direito de estudar na escola comum, mas também, exigirem o acesso ao trabalho e a todos os bens culturais produzidos pela humanidade, para que, de posse dos mesmos, possam ir rompendo com as amarras que as tornaram vítimas da filantropia e da pag:85 caridade. Para tanto, elas necessitam estar envolvidas nas suas lutas imediatas e naquelas outras que ocorrem em seu meio circundante. A adoção desse procedimento, com certeza não irá tirá-los da sua histórica condição de excluídos sociais. No entanto, pode incluí-los junto àqueles que lutam pela construção de uma nova sociedade, onde as pessoas não sejam, só pelo fato de possuir uma deficiência, tomadas enquanto um elemento perturbador da ordem social e, com isto, obrigadas a uma vida segregada. 4.5 AS CONDIÇÕES DE TRABALHO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E SUA INCOMPATIBILIDADE COM A LÓGICA DA ORGANIZAÇÃO DA PRODUÇÃO CAPITALISTA Ao longo da existência da humanidade, os homens, através das constantes lutas para produzir os meios de vida necessários a sua sobrevivência, vêm vivenciando diferentes formas de organização social. Em conformidade com a forma de propriedade dos meios de produção, bem como, da relação de trabalho existente, estas sociedades acabam pertencendo a determinados períodos históricos. Com o estabelecimento das sociedades classistas, a história da humanidade passou a ser determinada a partir do desenvolvimento das contradições entre as antagônicas classes, presentes em cada modo de produção. Isto significa afirmar que a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas das classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor e servo, mestre de corporação e oficial, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das suas classes em luta (MARX e ENGELS, 2001, p. 8). Diante do que foi demonstrado até aqui a respeito das condições de existência das pessoas com deficiência ao longo da história da humanidade, principalmente daquelas pertencentes as classes sociais exploradas, pode-se afirmar que estas sempre estiveram à margem destes acontecimentos históricos. Isto vem ocorrendo mesmo a partir do momento em que elas passaram a ter o direito à vida, já que esse fato as livrou do assassinato, mas as segregou do processo produtivo e, desta forma, impedindo-as de participarem dos embates sociais. Como já foi visto neste capítulo, o capitalismo, que está assentado na propriedade privada dos meios de produção, na relação assalariada de trabalho, na produção de mercadorias e na obtenção do lucro por meio da extração da mais-valia, desde seus primórdios procurou colocar homens, mulheres e crianças a serviço de seu processo de pag:86 acumulação. Para colocar a grande maioria da população a serviço de seus interesses, os burgueses, além de arrancar o trabalhador da terra e provocar a ruína dos artesãos, mercantilizou praticamente tudo aquilo que os homens necessitam para sobreviver. Este fato, que foi crescendo ao longo do desenvolvimento do modo de produção capitalista, acabou obrigando as pessoas a se submeterem a lógica do mercado burguês para sobreviver, onde uma mercadoria deve ser trocada por outra, mediada simbolicamente pelo dinheiro. Para sobreviver nesta relação, a imensa maioria da população necessita estar inserida no processo produtivo na condição de empregado, produzindo, direta ou indiretamente, os recursos que possam garantir sua existência. Apesar desta necessidade estar colocada a todos aqueles que pertencem a classe trabalhadora, uma parcela da mesma não consegue inserir-se nas relações assalariadas de trabalho. Isto ocorre porque, "com a acumulação do capital produzida por ela mesma, a população operária produz pois, em proporções incessantemente crescentes, os meios de se tornar excedente" (MARX, 1982:160). Este excedente populacional, que torna-se maior ou menor, dependendo das necessidades do capital e que é produzido a partir da riqueza gerada pela própria classe operária, "forma para a indústria um exército de reserva sempre disponível, e do qual o capital tem inteira propriedade, como se ele o tivesse criado com seus próprios gastos" (MARX, 1982, p. 161). Na retaguarda deste exército de reserva de força de trabalho estão aqueles que possuem uma capacidade produtiva menos rentável para os detentores do capital. Dentre estes, encontram-se as pessoas com deficiência, para as quais o modo de produção capitalista vem negando até a possibilidade de serem exploradas numa relação de trabalho formal. Ao contrário do que muitos imaginam, existe uma quantidade expressiva de pessoas com deficiência na sociedade. A ONU estima que 10% da população mundial apresenta algum tipo de limitação, incluindo-se as restrições leves, moderadas e severas.(...) Os portadores de deficiência se concentram nos países mais pobres. Mais de 400 milhões de portadores de deficiência vivem em zonas que não dispõem dos serviços necessários para ajudá-los a superar as suas limitações (ELWAN apud PASTORE, 2000, p.72). Aplicando-se as estimativas da Organização Mundial da Saúde, pode-se afirmar que no Brasil existem mais de 16 milhões de pessoas com deficiência. Destas, "estima-se em 9 milhões as que estão em idade de trabalhar. Mas as que trabalham, formal e informalmente, mal chegam a um milhão - pouco mais de 10% " (PASTORE, 2000, p. 73). pag:87 O lado mais perverso desta realidade reside no fato de que a maioria das pessoas com deficiência que estão trabalhando, encontram-se atuando de maneira informal, em entidades, que, como já demonstrado anteriormente, buscam segregá-las do convívio social e aproveitá-las enquanto mão-de-obra semi-escrava. Além disto, muitas acabam caindo na mendicância ou desenvolvendo atividades muito próximas desta. No Brasil, dentro do que se chama trabalho, a vasta maioria é constituída de pedintes de rua (principalmente cegos e portadores de limitações físicas), camelôs que trabalham irregularmente, vendedores de bilhete de loteria, distribuidores de adesivos nos semáforos e os que pedem dinheiro em nome de entidades que cuidam de portadores de deficiência (RIBAS apud PASTORE, 2000, p. 73). Levando-se em consideração apenas as pessoas com deficiência que trabalham de maneira formal, este número cai de forma drástica, pois, se formos considerar como trabalho a atividade que é exercida de forma legal, com registro em carteira de trabalho ou de forma autônoma, mas com as devidas proteções da seguridade social, é bem provável que essa proporção fique em torno de 2% do total de portadores de deficiência em idade de trabalhar do Brasil -180 mil pessoas (PASTORE, 2000, p. 74). Estes números ainda são mais reduzidos ao se analisar o emprego industrial no Brasil. Segundo um estudo de 1999, realizado pelo SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - junto a uma amostra de 516 empresas, foi possível verificar que de um total de 337.580 empregados registrados naquelas empresas, 2.414(0,7%) foram considerados como portadores de deficiência. Por esse dado, o emprego formal atinge menos de 1% do emprego do setor industrial. Ademais, os poucos que entram no segmento formal têm dificuldade de nele permanecer por muito tempo. Acabam saindo prematuramente e demoram para voltar (PASTORE, 2000, p. 74-75). Esta exclusão é um pouco menor nos países desenvolvidos, onde a combinação de diversos programas sociais tem feito com que uma quantidade mais expressiva de pessoas com deficiência consigam ingressar no mercado de trabalho. "Quando se consideram os portadores de deficiência de todos os níveis de gravidade - leves, moderados e severos - na Europa e Japão, a proporção dos que estão em idade de trabalhar e que trabalham varia entre 30% e 45%" (PASTORE, 2000, p. 75). Na busca do entendimento desta situação vivenciada pelas pessoas com deficiência, as explicações quase sempre recaem nos seguintes fatores: na carência de escolaridade e qualificação profissional dos mesmos; na dificuldade em se ter acesso a tecnologias que possam potencializar a existência e, por conseqüência, a produtividade desta força de pag:88 trabalho; na existência de barreiras arquitetônicas e atitudinais e; na necessidade de se formular uma eficaz legislação que leve os empregadores a se interessarem pela exploração da capacidade produtiva daqueles que pertencem a esse segmento social. Numa análise rápida e desprovida de um método que permita compreender a realidade social na sua essência, poder-se-ia atribuir maior ou menor peso a qualquer um destes fatores ou admitir que a soma de todos eles constitui a razão fundamental que exclui as pessoas com deficiência do processo de produção dos meios de vida de que a humanidade necessita para sua sobrevivência. Não se pode negar que os empregadores, devido à existência de um exército de mão-de-obra de reserva cada dia maior, vem ampliando as exigências de escolaridade e de qualificação profissional para os seus funcionários. Apesar desta exigência, na maior parte dos países, principalmente nos subdesenvolvidos e nos em desenvolvimento, a grande maioria dos cegos, dos surdos e daqueles com graves dificuldades físicas ou cognitivas, não recebem nenhum tipo de educação formal. "Segundo a Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação, contando-se todas as séries das escolas públicas e particulares, há, no Brasil, pouco mais de 300 mil alunos portadores de deficiência matriculados" (MEC apud PASTORE, 2000, p. 207). Ao se analisar a causa do pequeno número de pessoas com deficiência matriculadas nas redes de ensino, poder-se-ia afirmar que isso decorre, dentre outras razões do despreparo do professor para ensinar o aluno com necessidades educacionais mais diferenciadas; das barreiras físicas existentes nas instalações escolares; da falta de recursos didático-pedagógicos adequados a esses educandos e das atitudes preconceituosas que permeiam todos os segmentos da sociedade. Porém, para que se possa ir à raiz deste problema, faz-se necessário ater-se ao fato de que na sociedade capitalista, a escola, como já foi dito, cumpre basicamente três funções: instruir para o trabalho, preparar para as relações sociais burguesas e justificar a desigualdade social. No caso das pessoas com deficiência, principalmente daquelas que pertencem aos setores explorados e que vivem nos países não desenvolvidos ou em desenvolvimento, do ponto de vista do capital, a escola enquanto transmissora do conhecimento científico, torna-se desnecessária pois, este segmento social encontra-se na retaguarda do exército de mão-de-obra de reserva, com mínimas possibilidades de ser aproveitado no processo produtivo; vive uma existência segregada, em instituições ou mesmo no âmbito familiar e acaba sendo tutelada e, ainda, a condição de inferioridade pode ser justificada pela sua própria limitação física, ou cognitiva e ou sensorial. Por estas razões que cegos, surdos e aqueles com graves dificuldades físicas ou cognitivas, na sua grande maioria, acabam não dispondo da formação pag:89 necessária para se colocarem em pé de igualdade, do ponto de vista da formação escolar, com as demais pessoas no momento de disputar uma vaga no mercado de trabalho. No que se refere ao desenvolvimento tecnológico, não se pode negar que os homens, por meio dos seus embates para sobreviver, vêm produzindo um conjunto de conhecimentos que poderiam estar a serviço da potencialização da existência de toda a humanidade. No capitalismo, com o advento do maquinismo e, mais recentemente, com o desenvolvimento da informática, muitas tarefas que até outrora eram impossíveis ou muito difíceis de serem desenvolvidas tornaram-se "perfeitamente" realizáveis por qualquer pessoa, incluindo aquelas que possuem algum tipo de deficiência mais grave. As novas tecnologias estão viabilizando certas atividades até então impensáveis (...). Esse é o caso da informática e das telecomunicações. Essas tecnologias estão permitindo aos portadores de deficiência um domínio de atividades até pouco tempo inexeqüíveis (PASTORE, 2000, p. 86). O desenvolvimento tecnológico, por se dar numa relação de exploração de uma classe sobre a outra, não pode equiparar a capacidade produtiva das pessoas e muito menos, colocar todos aqueles que possuem alguma deficiência em pé de igualdade com os demais trabalhadores no momento de disputar uma vaga no mercado de trabalho. Esta impossibilidade decorre basicamente de três fatores os quais são determinados pela lógica do empreendimento capitalista. O primeiro refere-se a apropriação privada das tecnologias por parte da classe dominante, o que acaba impedindo que a maioria da população, dentre ela, as pessoas com deficiência pertencente ao setor explorado, possa ter acesso àquelas de uso pessoal, (computadores adaptados, aparelhos auditivos, bengalas, cadeiras de rodas motorizadas, bons serviços de reabilitação e habilitação etc.). O segundo diz respeito ao fato de que, por mais desenvolvidas que possam ser as tecnologias, não têm conseguido substituir os órgãos dos sentidos, a ausência ou anormalidade de membros do corpo humano e nem graves deficiências cognitivas ao ponto de tornarem a capacidade produtiva deste segmento social tão rentável para o capitalista quanto a dos demais trabalhadores. Para exemplificar o fato de que as tecnologias não podem garantir às pessoas com deficiência a mesma produtividade no trabalho, basta imaginar um surdo na atividade de atendimento ao público, um cego mexendo com a burocracia de uma empresa e alguém com sérias deficiências físicas submetida ao ritmo frenético de uma fábrica. Alguns pesquisadores ao procurarem demonstrar o potencial produtivo das pessoas com deficiência, apresentam como exemplos, dentre outros, cegos eletricistas de rua e tetraplégicos arquitetos. pag:90 Como as estatísticas indicam estes são apenas exceções, mas os mesmos são propagandeados enquanto verdadeiros modelos a serem seguidos por todos. Mas esta propaganda serve muito mais enquanto instrumento ideológico para justificar a ordem vigente, pois a mesma contribui para reforçar a falsa idéia de que no capitalismo todos têm oportunidades de vencer na vida e até mesmo aqueles que "naturalmente" estão em desvantagem, quando imbuídos de boa vontade podem superar suas dificuldades e conquistar seu espaço na sociedade. O terceiro refere-se ao fato de que a tecnologia da produção capitalista é desenvolvida a partir das necessidades impostas pelo tipo de mercadoria a ser produzida e está "adequada" a exploração de um padrão médio de ser humano. Neste processo, o trabalhador não pode adequar os equipamentos de trabalho segundo as suas necessidades específicas mas, sim, deve estar ajustado aos mesmos, como já denunciava Marx (1982), ao falar sobre o advento do maquinismo: "O operário não domina as condições de trabalho, é dominado por elas" (p. 113). Diante deste processo o homem torna-se uma extensão do instrumento de trabalho, tendo que atender às exigências do mesmo e, desta forma, tornando-se uma espécie de homem-máquina. Neste sentido, os órgãos do corpo humano ganham novas definições: os olhos são faróis, o coração é visto como uma bomba, os rins são filtros, os braços e mãos são guindastes ou pinças, os nervos são percebidos como fios condutores e, mais recentemente, o cérebro passou a ser considerado como um computador perfeito. Numa sociedade onde a força de trabalho está colocada enquanto uma mercadoria, a qual deve funcionar como uma extensão da máquina e possuir a precisão de um relógio, a pessoa com deficiência que tenha alguma limitação acentuada, passa a ser considerada um mecanismo defeituoso e, sendo assim, com maiores dificuldades de satisfazer as necessidades de seu comprador, ou seja, a de gerar a maior quantidade possível de lucro para o capitalista. "Se o corpo é uma máquina, a excepcionalidade ou qualquer diferença nada mais é do que a disfunção de alguma peça dessa máquina. Ou seja, se na Idade Média a diferença estava associada a pecado, agora passa a ser relacionada à disfuncionalidade" (BIANCHETTI, 1998, p. 35). Tal disfuncionalidade pode estar apenas na perda de um dedo, provocado por uma mutilação sofrida pelo trabalhador. Esta constatação já era denunciada num fragmento de um relatório do século XIX, que tratava dos acidentes nas fábricas inglesas. No mesmo, datado de 31 de outubro de 1855, o inspetor Leonard Horner faz o seguinte comentário: Certos empregadores falaram com uma frivolidade indesculpável de certos acidentes, como a perda de um dedo que eles consideram como uma bagatela. A vida e o futuro de um operário dependem de tal forma de seus dedos que tal perda constitui para ele um acontecimento pag:91 trágico. Quando escuto essas palavras absurdas, pergunto: Suponhamos que vocês tivessem necessidade de um novo operário e que para isso se apresentassem dois, ambos igualmente capacitados, mas um não tendo mais o polegar ou o indicador: qual escolheriam? Sem nenhuma hesitação, escolheriam o que tivesse todos os dedos ( HORNER apud MARX, 1982, p. 116). As barreiras arquitetônicas e atitudinais, que consistem na falta de adequações às necessidades específicas das pessoas com deficiência, como as de edificações e de meios de transportes, bem como a rejeição àquele que destoa do padrão físico, cognitivo e sensorial pré-estabelecido, também se tornam mais um elemento que contribui para a exclusão do mercado de trabalho das pessoas com deficiência. Por isso, os empregadores precisam ser educados e estimulados a fazer uma 'acomodação razoável' para exercer as suas atividades no máximo de sua potencialidade. Por exemplo: se o prédio onde está o local de trabalho tem cinco degraus, esses degraus constituem uma barreira para quem tem competência profissional, mas usa cadeira de rodas. Uma acomodação razoável consistiria na eliminação desses degraus ou na construção de uma rampa - ajudados por linhas de financiamento, quando necessárias (PASTORE, 2000, p. 64). Porém, estas barreiras, não podem ser entendidas apenas enquanto o resultado de atitudes preconceituosas e discriminatórias, que brotam na cabeça dos homens sem a existência de razões objetivas. Pelo contrário, necessitam ser compreendidas enquanto decorrentes da lógica da organização do processo de produção capitalista, o qual, como mencionado está voltado exclusivamente para permitir ao dono do capital a obtenção da maior quantidade de lucro possível. Para atingir tal objetivo, o burguês organiza o processo produtivo em conformidade com as conveniências do lucro onde, dentre outras medidas a substituição de escadas por rampas, as modificações nas instalações sanitárias, a predisposição dos instrumentos de produção e a aquisição de tecnologias adaptadas faz com que o capitalista tenha de investir uma quantidade maior de capital para obter, na melhor das hipóteses, a mesma quantidade de mercadorias. Mesmo quando a produtividade da pessoa com deficiência for semelhante a dos demais trabalhadores, havendo a necessidade de modificações no processo produtivo, estas encareceriam as mercadorias e fariam com que diminuísse o lucro do capitalista. Apesar do capitalismo não se interessar pela exploração da força de trabalho das pessoas com deficiência, elas estão presentes na sociedade e necessitam, dentre outras coisas, de alimentos, de moradias e de vestimentas e, para adquirir estes bens de forma digna, precisam vender a sua capacidade de produzir. Com a finalidade de tentar abrir uma brecha no excludente processo de produção capitalista, este segmento social, em especial aqueles que pertencem aos setores explorados, há algum tempo vem cobrando do Estado algumas medidas pag:92 que possam contribuir para a sua inserção no mercado de trabalho. Como já demonstrado no início deste capítulo, a burguesia não se tornou a classe dominante por meio da prática da filantropia, empregando as pessoas apenas com a finalidade de oportunizar a estas as condições de produzirem os seus meios de vida, mas pelo contrário, objetivando explorá-las sem piedade, arrancando da sua capacidade produtiva a maior quantidade de lucro possível, obrigando-as a trabalharem, se possível, dia e noite. Por não possuírem uma estrutura física, ou sensorial e ou cognitiva, rentável para o capital, as pessoas com deficiência vêm buscando o estabelecimento de algumas medidas legais que possam lhes auxiliar na inserção no mercado de trabalho. Neste sentido, como uma das principais conquistas deste segmento social, encontra-se a política de cotas - reserva de um percentual de postos de trabalho para as pessoas com deficiência. Na historiografia existem relatos apontando que, já no século XIX, tal procedimento era adotado. Em 1815, no Parlamento inglês, assinalou-se o caso de uma paróquia de Londres que estabeleceu um contrato com um fabricante do Lancashire pelo qual este se comprometia a receber, por cada 20 crianças sãs física e mentalmente, uma idiota (MARX, 1982, p. 189). Com o advento da Primeira Guerra Mundial, aumentou consideravelmente o número de pessoas com deficiência e, por conseqüência, a luta por emprego para este segmento social. Como resultado destas reivindicações, em 1923 a OIT recomendou a aprovação de leis nacionais que obrigavam entidades públicas e privadas a empregar um certo montante de portadores de deficiência causada por guerra. Em 1944, na Reunião de Filadélfia, a OIT aprovou uma recomendação, visando induzir os países-membros a empregar uma quantidade razoável de portadores de deficiência não-combatentes (PASTORE, 2000, p. 157). Esta recomendação da Organização Internacional do Trabalho foi transformada em lei em muitos países, dentre eles, o Brasil. Na legislação brasileira, duas leis merecem ser destacadas. A primeira (Lei 8112) criou uma reserva de empregos para pessoas com deficiência nos órgãos civis da União, autarquias e fundações públicas federais, ao estabelecer que às pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para o provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% das vagas oferecidas no concurso (BRASIL, 1990, art. 52, inc. II). pag:93 A Segunda (Lei 8213), por sua vez, estabeleceu cotas compulsórias a serem respeitadas pelas empresas privadas na admissão e demissão de pessoas com deficiência. Em conformidade com esta lei a empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção: I - de 100 até 200 empregados 2%; II - de 201 a 500 3%; III - de 501 a 1.000 4%; IV - de 1.001 em diante 5% (BRASIL, 1991, art. 93, inc. I - IV). Mesmo que todas as empresa cumprissem esta última lei, a quantidade de pessoas com deficiência que adentrariam no mercado de trabalho estaria muito aquém daqueles que necessitam trabalhar. Segundo dados de 1998, para cumprir a cota de 2%, as empresas de 100 a 200 empregados teriam de contratar 35.007 portadores de deficiência; no caso da cota de 3%, as que possuem de 201 a 500 empregados teriam de empregar 74.096 pessoas; para a cota de 4%, as empresas de 501 a 1.000 empregados teriam de recrutar 74.967 portadores; e, para o caso dos 5%, as empresas com mais de 1.000 empregados teriam de admitir 306.891 pessoas. Isso dá quase 500 mil pessoas (PASTORE, 2000, p. 206). Ao comparar estas duas leis, pode-se perceber que a primeira, do ponto de vista legal, oferece mais postos de trabalho para as pessoas com deficiência, do que a última. A explicação para o fato da reserva do serviço público (de 5% a 20%), ser maior que a da iniciativa privada (1% a 5%), é mais um outro elemento que auxilia na demonstração de que o burguês rejeita a força de trabalho deste segmento da sociedade. Afinado com os interesses do capital, o legislador preferiu estabelecer uma quantidade maior de postos de trabalho naquele setor que não está submetido à lógica da produção capitalista. Atendo-se ao fato de que no Brasil a quantidade de pessoas com deficiência que estão em idade de trabalhar é de nove milhões, que a lei lhes reserva em torno de 500 mil postos de trabalho no setor privado e que o número daqueles que conseguem se empregar é inferior a 200 mil, pode-se afirmar que estes dados também ajudam a explicitar a rejeição da burguesia em explorar tal força de trabalho. Esta explicitação ocorre de três formas: na necessidade de se estabelecer leis para tentar obrigar o empregador a explorar a capacidade produtiva da pessoa com deficiência; na quantidade de vagas reservadas na iniciativa privada, as quais, se fossem cumpridas, atenderiam apenas a uma pequena minoria, isto é, pouco mais de 5% das que estão em idade de trabalhar; e a resistência dos empresários em cumprir tal dispositivo legal. pag:94 Nos países desenvolvidos, apesar da quantidade de pessoas com deficiência que estão inseridas no mercado de trabalho ser bem maior, a legislação e a prática adotada em relação a esse segmento social, também revela o desinteresse dos empregadores pela sua capacidade de trabalhar. Na maioria dos mesmos, existem cotas, combinadas com incentivos aos empregadores, que exploram esta capacidade produtiva e opções para aqueles que não pretendem adotar tal procedimento. Já alguns têm preferido flexibilizar a legislação trabalhista, admitindo remuneração inferior dentro de uma mesma função para aqueles que não alcançam a mesma produtividade. Dentre as medidas adotadas pelos países que combinam políticas de cotas com incentivos econômicos aos empregadores, objetivando o ingresso das pessoas com deficiência no mercado de trabalho e que ajudam a confirmar a hipótese defendida nesta pesquisa, podem ser destacadas a complementação de salário do trabalhador, feita diretamente ao mesmo por meio de recursos estatais. Esta medida é adotada porque "muitas vezes, a pessoa trabalha apenas uma parte do dia e a complementação cobre a outra parte. Outras vezes, ela tem um salário menor na empresa e a complementação iguala-a aos não-portadores de deficiência" (PASTORE, 2000, p. 147). Pode-se, ainda, destacar a redução de contribuições sociais, dentre outras, a previdenciária, tanto de empregado quanto de empregador e o repasse de recursos para as empresas custearem os gastos com o processo de adaptação de sua estrutura produtiva. Além destas medidas, em alguns países desenvolvidos é facultado ao empregador o direito de pagar contribuições a determinados fundos e, desta forma, ficando isentos de cumprir as cotas estabelecidas por lei. No continente europeu predominam as políticas de cotas com incentivos e alternativas aos empregadores. "Hoje, dois terços dos países da Europa possuem cotas legais e compulsórias - a maioria baseada em sistemas de cota- contribuição" (THORNTON apud PASTORE, 2000, p. 158). Como exemplos práticos das mesmas, podem ser destacadas aquelas que vêm sendo adotadas na Áustria, na Alemanha e na França, as quais, apesar de ter ampliado a quantidade de pessoas com deficiência inseridas no mercado de trabalho, também revelam o desinteresse dos empregadores em explorar a capacidade produtiva deste segmento social. Na Áustria, onde existe um sistema de cota-contribuição, a lei federal exige que todas as empresas que tenham mais de 25 empregados reservem 4% das vagas de trabalho para as pessoas com deficiência, ou paguem uma contribuição a um fundo especial. pag:95 Cerca de 60% do total de cotas são preenchidos, mas a maioria trabalha em órgãos públicos. No setor privado, o preenchimento das cotas é maior nas grandes empresas. Quando se considera o universo do setor privado, como um todo, apenas 20% das empresas preenchem suas cotas. Ou seja, 80% pagam a contribuição (PASTORE, 2000, p. 160). Por sua vez, a lei alemã estabelece uma reserva de postos de trabalho de 6% para todo empregador, público ou privado, que possua mais de 16 empregados. No caso dos primeiros, o percentual é único. Já para os últimos, a cota varia de acordo com o ramo de atividade e região do País. As grandes empresas (mais de 1.000 empregados) normalmente chegam perto da cota de 6%. O setor público ultrapassa essa marca. Nas pequenas empresas do setor privado (16-30 empregados), porém, a cota média fica em torno de apenas 2,7%. As empresas dos setores agrícola, construção, transporte, comunicação, comércio varejista e bancos também ficam abaixo dos 6%. As firmas que não alcançam a cota pagam uma contribuição para um fundo de apoio aos portadores de deficiência. Cerca de 75% das empresas optam pela contribuição total ou parcial (PASTORE, 2000, p.162-163). Na França, a lei exige que órgãos públicos e empresas privadas (com mais de 20 empregados) preencham 6% de seus postos de trabalho através da contratação de pessoas com deficiência. Neste país, também a grande maioria das pessoas com deficiência estão impedidas de terem acesso ao mercado de trabalho, pois, "cerca de 63% das empresas pagam a contribuição; 12% contratam toda a cota; 20% contratam uma parte e pagam contribuição para completar a cota; as demais fazem outras combinações" (PASTORE, 2000, p. 166). Alguns outros países desenvolvidos, certamente com a finalidade de não criarem transtornos aos capitalistas, nunca possuíram leis que estabelecessem reservas de postos de trabalho para as pessoas com deficiência. Também existem aqueles que, após várias décadas de adoção das mesmas, vêm abandonando-as e utilizando outros procedimentos mais ajustados a lógica do capital. Dentre os países que nunca possuíram dispositivos legais reservando postos de trabalho para as pessoas com deficiência, encontra-se os Estados Unidos da América, no qual só existe uma lei genérica "antidiscriminação", aprovada em 1990. No mesmo, a política específica, voltada para a inserção deste segmento social no processo produtivo, está assentada simplesmente na flexibilização dos direitos trabalhistas e num serviço de reabilitação e habilitação. Neste país, "a legislação trabalhista é suficientemente flexível para permitir às empresas pagar um portador de deficiência, por exemplo, 75% do salário quando a sua produtividade é de 75% em relação à de um não-portador" ( GOPUS apud PASTORE, 2000, p. 135). Mesmo com tal flexibilidade, o aproveitamento desta força de trabalho é muito pequeno, pois "nos Estados Unidos, cerca de 400 mil novos portadores de deficiência entram pag:96 nos serviços de reabilitação todos os anos. Apenas 4 mil conseguem retornar ao trabalho" (MASHAWE RENO apud PASTORE, 2000, p. 144). Nos últimos tempos, enquanto reflexo das políticas neoliberais, alguns governos vêm tornando mais fácil a tarefa dos capitalistas - a de explorar com mais lucratividade a capacidade produtiva do trabalhador. Neste sentido, alguns países que foram pioneiros no estabelecimento de leis reservando postos de trabalho para as pessoas com deficiência, vêm abandonando tais procedimentos. Este é o caso da Inglaterra, onde "o sistema de cotas foi abandonado em 1995. Atualmente, os programas de apoio aos portadores de deficiência se baseiam na lei antidiscriminação (Disability Discrimination Act), aprovada naquele ano" (PASTORE, 2000, p. 176). Diante do que já foi exposto a respeito das dificuldades que as pessoas com deficiência tem encontrado para se inserir no mercado de trabalho, bem como, das medidas que vêm sendo adotadas para favorecer o aproveitamento de sua capacidade de produzir, parece ser desnecessário elencar novos argumentos para comprovar que a capacidade produtiva deste segmento social não interessa à lógica da produção capitalista. Apesar do número de pessoas com deficiência inseridos no mercado de trabalho ser um pouco maior nos países desenvolvidos, em comparação com aqueles das nações em desenvolvimento, não resta dúvidas de que nos primeiros a burguesia também despreza esta força de trabalho. Em tais países, a maior parte das empresas privadas, mesmo com os incentivos financeiros estatais e da flexibilização das leis quando a legislação permite, preferem pagar determinadas contribuições a fundos especiais do que explorar a capacidade produtiva daqueles com deficiência física, ou sensorial e ou cognitiva. Apesar do capitalismo não se interessar pela capacidade produtiva das pessoas com deficiência, algumas destas, devido ao desenvolvimento tecnológico, vêm percebendo que podem contribuir no processo de produção dos meios de vida de que os homens necessitam para sobreviver e pondo-se em luta para romper com uma prática que os excluem socialmente desde os tempos mais remotos da história da humanidade. Porém, para concretizar este rompimento, é preciso ter claro de que não basta apenas se perceber enquanto um ser humano com capacidade de produzir, ou a inserção de alguns no mercado de trabalho. Faz-se necessário a edificação de uma nova sociedade, onde a forma de tratamento dispensado as pessoas com deficiência não seja definida a partir da quantidade de riqueza que as mesmas podem produzir, mas sim, pelas necessidades específicas presentes em cada uma delas. pag:97 A construção desta nova sociedade passa necessariamente pela luta contra determinadas práticas, dentre elas a teológica, que continua a compreender a existência dos mesmos enquanto o resultado de ações demoníacas ou como desígnios divinos; a da tradicional medicina cientificista, que os consideram como seres humanos inválidos, incapazes e inúteis; a da educação, seja ela especial ou não, que os têm enquanto elementos perturbadores da ordem social; e, principalmente, contra a exploração classista, pois, na atualidade, é ela a base fundamental da exclusão da maioria da população e, em particular, das pessoas com deficiência. pag:98 CONCLUSÃO Após a análise das formas pelas quais as pessoas com deficiência vêm sendo compreendidas e tratadas ao longo da história da humanidade, em especial nas sociedades primitivas e nos modos de produção escravista, feudal e capitalista, é possível derivar algumas reflexões que podem auxiliar no entendimento das verdadeiras razões da exclusão social daqueles, que do ponto de vista físico, ou sensorial e ou cognitivo, não correspondem aos padrões pré-estabelecidos. Através da mesma pôde-se observar que em todos os períodos históricos analisados a grande maioria dos surdos, dos cegos, e daqueles com graves limitações físicas e ou cognitivas foram excluídos socialmente. No entanto, a razão para tal procedimento, bem como, a forma de praticá-lo, foi determinado em conformidade com o modo pelos quais os homens estavam ou estão organizados para produzir os seus meios de vida. A partir da análise das informações obtidas ao longo desta pesquisa, foi possível obter três conclusões a respeito das condições de existência das pessoas com deficiência ao longo da história da humanidade. A primeira, que se verificou nas sociedades primitivas e no modo de produção escravista, caracterizou-se pelo predomínio da prática da eliminação ou do abandono das pessoas com deficiência. Embora tal forma de proceder tenha sido comum a essas sociedades, a mesma foi o resultado de condicionantes específicos presentes em cada um destes períodos históricos. A prática da eliminação ou do abandono verificada nas sociedades primitivas foi o resultado do fato de que, na imensa parte deste período da história, os homens viveram na fase do nomadismo, a qual foi marcada por enormes dificuldades de sobrevivência, impostas pela própria natureza e pelo baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas. Diante desta realidade, os cegos, os surdos e os com graves limitações físicas e ou cognitivas,não encontraram meios para acompanhar o ritmo de vida imposto aos membros do grupo, pela própria natureza e, desta forma, tornavam-se um pesado fardo que a sua comunidade não podia carregar. A solução para o problema, por uma questão de sobrevivência dos demais membros do grupo, foi o abandono, a segregação e o extermínio das pessoas com deficiência. No escravismo, a eliminação ou abandono das pessoas com deficiência também se deu devido ao fato destas não estarem em condições de dar conta das tarefas que a realidade social exigia dos homens que viviam neste período histórico. Porém, enquanto resultado do desenvolvimento econômico, político e social, esta prática foi sendo abandonada em relação pag:99 àqueles que pertenciam a classe dos escravagistas. No entanto, para os pertencentes aos setores explorados da sociedade, esses procedimentos perduraram durante toda a existência deste modo de produção. A explicação para a eliminação ou o abandono das pessoas com deficiência, que pertenciam a classe escravista, como um procedimento muito comum ao longo de todo este período histórico, encontra-se no fato de que para que o escravo pudesse ser rentável ao proprietário tornava-se necessário que ele obtivesse com o seu trabalho uma produção acima daquilo que necessitava consumir para continuar vivo, ou seja, um excedente que fosse capaz de financiar a si e toda a superestrutura que se fez necessário nas relações de produção escravista. Como essa tarefa não era possível para aqueles com graves deficiências físicas ou sensoriais e ou cognitivas, tornou-se muito mais vantajoso para o escravagista livrar-se dos mesmos. Os que conseguiam escapar do assassinato, foram obrigados a submeterem-se a uma existência ainda mais miserável do que aquela vivenciada por aqueles que estiveram submetidos à escravidão. A segunda foi a substituição das práticas generalizadas da eliminação ou do abandono das pessoas com deficiência, verificada nas sociedades primitivas e no escravismo, por procedimentos segregativos, tanto no feudalismo quanto no capitalismo. Esta nova forma de se compreender e tratar surdos, cegos e aqueles com graves deficiências físicas ou cognitivas, não deve ser entendida como sendo o resultado da influência exercida pelo pensamento judaico-cristão, como tem sido apresentado pela maioria das pesquisas a respeito do assunto, mas sim, enquanto uma prática que se tornou possível a partir das mudanças que se processaram na forma de organização dos homens para produzir os seus meios de vida. No feudalismo, ao contrário do escravismo, mesmo dentre os setores explorados da população, existiram condições objetivas que favoreceram a sobrevivência daqueles que nasceram com algum tipo de deficiência. Esses condicionantes decorriam do fato do servo ter a "posse" de um pedaço de terra, onde vivia com a família produzindo seus meios de vida e a parte que cabia ao seu senhor; da possibilidade que o mesmo teve de até certo ponto exercer o controle sobre sua prole e ser o organizador do seu processo e ritmo de trabalho; e a possibilidade de aproveitamento da capacidade produtiva de algumas pessoas com deficiência numa economia familiar . A existência destes condicionantes, embora tenha sido determinante para garantir a sobrevivência das pessoas com deficiência, não foi suficiente ao ponto de possibilitar que a maioria das mesmas pudessem estar incluídas nas relações servis de produção. Isto ocorreu já pag:100 que aqueles que possuíam uma deficiência muito acentuada, certamente não puderam apresentar um rendimento satisfatório no desenvolvimento de suas atividades produtivas, tornando-se uma "cruz" a ser carregada pela sua família e, desta forma, as saídas que restaram para a sobrevivência deste segmento social foram a mendicância e o internamento em asilos, hospícios e leprosários. Essas condições de existência determinadas por razões objetivas numa sociedade classista só poderiam ser justificadas a partir das idéias hegemônicas presentes na mesma, ou seja, a ideologia da classe dominante. Desta forma, o pensamento judaico-cristão, que justificou as relações sociais feudais de produção, atribuindo-na à vontade divina, encontrou na sua tradição teológica as bases para respaldar, não só a mendicância e o internamento, mas também a eliminação física das pessoas com deficiência ocorrida ao longo da "Santa Inquisição". No capitalismo, apesar do grande desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas, a imensa maioria das pessoas com deficiência encontram-se excluídas do processo de produção dos meios de vida de que a sociedade necessita para viver, bem como do acesso aos mesmos. Esta exclusão encontra-se diretamente condicionada pela forma de organização da produção, a qual rejeita a exploração da capacidade produtiva deste segmento social. Esta rejeição é decorrente da dificuldade que estes têm, em comparação com os demais trabalhadores, de render para o burguês a mesma quantidade de mais-valia. Diante do fato de que a capacidade produtiva das pessoas com deficiência está em contradição com a lógica da organização da produção capitalista, os mesmos tem sido obrigados a permanecerem na retaguarda de um exército de mão-de-obra de reserva e, com isto, impedidos de pertencer à classe trabalhadora e, por conseqüência, de fazer parte do sujeito histórico de seu tempo. Na atualidade, o pensamento hegemônico vem procurando atribuir, enquanto determinantes para este fato, as características existentes na própria pessoa com deficiência, ou seja, nas limitações físicas, ou na imperfeição sensorial e ou nas dificuldades cognitivas. Para justificar a exclusão deste segmento social, o capitalismo vem se utilizando de velhas e novas concepções teológicas, da moderna medicina cientificista e da educação formal, seja ela especial ou não. Com tais instrumentos a sociedade burguesa procura esconder que a base fundamental da rejeição das pessoas com deficiência encontra-se na lógica da organização da sociedade burguesa, a qual se assenta na propriedade privada dos meios de produção, os quais devem produzir para o mercado, através da relação assalariada de trabalho, visando obter a maior quantidade possível de lucro para o dono do capital. pag:101 A terceira e talvez a mais importante, encontra-se no caráter classista que vem determinando as condições de existência das pessoas com deficiência. Se nas sociedades primitivas, devido ao fato dos homens estarem mais condicionados pela força da natureza, a exclusão ocorria de forma natural, com o surgimento da exploração de uma classe sobre a outra os determinantes para a vida de surdos, de cegos e daqueles com graves limitações físicas e ou cognitivas, ganhou novos contornos. Agora não é mais o mundo natural o principal agente a determinar a forma de se compreender e tratar os que pertencem a este segmento social, mas, sim, as relações sociais de trabalho estabelecidas pelos homens para produzirem os seus meios de vida. Isto passou a ocorrer porque nas sociedades classistas a lógica que permeia a organização da produção exige que a pessoa seja capaz não só de produzir o suficiente para a sua manutenção, mas ainda um excedente destinado a manter a classe ociosa, objetivo este, como demonstrado, levou os detentores do poder a não se interessarem pela capacidade produtiva daqueles com graves dificuldades físicas, ou sensoriais e ou cognitivas. Ao se verificar que as bases objetivas da exclusão social das pessoas com deficiência encontram-se nas formas pelas quais os homens se organizam para produzir os seus meios de vida, também se pode perceber que, com o surgimento e desenvolvimento das sociedades classistas, foram sendo estabelecidas determinadas condições diferenciadas de existência aos membros deste segmento social. Este fato começou a se dar com o contínuo desenvolvimento científico e tecnológico, o qual passou a potencializar a capacidade humana. Na atualidade, enquanto os que fazem parte da classe dos detentores do poder podem não só ter acesso aos meios de vida que são necessários à sobrevivência de qualquer pessoa, como também possuem condições de se apropriarem de conhecimentos e adquirirem as inovações tecnológicas que ajudam a minimizar as dificuldades de se incluírem socialmente, aqueles que pertencem aos setores explorados da sociedade, na sua grande maioria, além de encontrarem-se desprovidos destas conquistas obtidas pela humanidade e, com isto, ficando entregue a todo tipo de miséria, ainda são, em muitos casos, segregados nas denominadas instituições especializadas. Após já ter verificado na historiografia as bases objetivas da exclusão das pessoas com deficiência nos períodos históricos estudados e, principalmente, no atual, pode-se afirmar que o envolvimento na luta pela inclusão deste segmento social, dentre outros espaços, no mercado de trabalho e na educação formal e comum, é mais uma importante prática que auxilia tanto na denúncia da desumanidade da lógica da organização da produção capitalista, pag:102 quanto no seu processo de transformação, o qual se dará com a edificação de uma nova sociedade, onde cegos surdos e aqueles com dificuldades físicas ou cognitivas, não continuem sendo tomados enquanto elementos perturbadores da ordem social e nem como seres ameaçadores à existência da espécie humana. pag:103 REFERÊNCIAS BIANCHETTI, L. Aspectos históricos da apreensão e da educação dos considerados deficientes. In: BIANCHETTI, L. e FREIRE, I. M. Um olhar sobre a diferença: interação, trabalho e cidadania. Campinas/Sp: Papirus, 1998. 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